
Ars Athletica
Sónia Calvário
“O Desporto tem o poder de mudar o mundo […] o poder de unir pessoas […] elimina os obstáculos raciais […] ri da discriminação. O desporto fala às pessoas numa linguagem que todos podem compreender.” (Nelson Mandela)
O Mundial Feminino de Futebol, com 24 seleções, decorre, em França, desde o dia 7 de junho, e será certamente um Campeonato inesquecível para o desenvolvimento da modalidade e, sobretudo, um marco na luta pela igualdade.
A seleção portuguesa não ficou apurada, mas estamos representados pela árbitra Sandra Bastos, que se estreou na passada segunda-feira, no Alemanha (4) vs África do Sul (0). Infelizmente, pouco se tem ouvido e visto na Comunicação Social sobre tão importante evento … a silly season do futebol masculino tudo absorve e perde-se uma boa oportunidade para contribuir para um mundo mais justo e igual.
Antes do início do Mundial de França, a seleção feminina da Alemanha, campeã europeia por 8 vezes, que recebeu, na primeira vez, como prémio, um serviço de chá (!), fez um vídeo com uma mensagem clara: Jogamos por um país que não sabe sequer o nosso nome. Outro vídeo que tem sensibilizado para a Igualdade de Género é o da seleção brasileira, a Jogadeira. As marcas internacionais também não quiseram perder o potencial que o evento e a modalidade representam em termos comerciais.
Mas a luta das atletas começou antes…
Em Agosto de 2017, Ada Hegerber, jogadora norueguesa, de 23 anos, tetracampeã europeia, e pentacampeã francesa, ao serviço do Lyon, anunciou recusar-se a jogar pela Federação de Futebol do seu país em virtude do tratamento desigual para com as jogadoras da seleção feminina. A primeira Bola de Ouro feminina (2018) não está, por isso, presente no Mundial de França. O compromisso, entretanto assumido pela Federação, de igualar os salários dos atletas das seleções nacionais não foi suficiente: “o dinheiro não é tudo”; “trata-se de preparação, profissionalismo”, criar condições de treino e dar igual reconhecimento às ligas feminina e masculina.
Existem outras jogadoras em diferendo com as respetivas Federações nacionais. É o caso da equipa jamaicana que conseguiu estar presente no Mundial graças à persistência de Cedilla Marley, filha de Bob Marley, e à angariação de fundos que a mesma preconizou. Ou as nigerianas, que chegaram a manifestar-se publicamente, reclamando os prémios (ridiculamente baixos, máxime quando comparados com os atletas masculino) a que tinham direito, pelas prestações ao serviço do país: 11 vezes campeãs no Campeonato Feminino das Nações Africanas, nas 14 edições existentes, as “Super Falcons” competiram, durante todo o ano de 2017, sem selecionador; dirigentes da Federação receiam a disseminação da homossexualidade, que é crime (!). E ainda as 28 jogadoras da seleção dos EUA que processaram a United States Soccer Federation por discriminação de género institucionalizada, não apenas pela diferenciação salarial, mas também das condições que, dizem, não lhe serem garantidas, com denúncias até de um controlo excessivo sobre a vida das atletas.
Marta, brasileira de 33 anos, atualmente jogadora no Orlando City (EUA), eleita 6 vezes a melhor jogadora do mundo também não tem perdido oportunidades para desempenhar o seu papel de Embaixadora da ONU para as Mulheres. A jogadora que conquistou, por 2 vezes, os Jogos Pan-Americanos (2003 e 2007) e 2 medalhas de prata olímpica (2004 e 2008), a primeira a marcar em 5 mundiais (esteve presente em todos, desde 2003), conta, até agora, com 17 golos (bateu o record do alemão Miroslav Klose), e, desde há um ano, que recusa patrocinadores, por nenhuma marca aceitar pagar o mesmo que a um jogador masculino de topo. Usa botas sem marca, ostentando o símbolo da campanha Go Equal (na imagem).
As lutas das atletas não têm sido em vão: a FIFA já se comprometeu, findo o Mundial, a rever as condições das jogadoras das seleções nacionais (os prémios pagos a estas equivalem a cerca de 5% do que é dado aos jogadores); algumas Federações assumiram que, quanto aos montantes pagos à atletas, irão igualar, ou pelo menos aproximar, aos dos homens; os patrocinadores perceberam já o nicho de mercado que têm subestimado (por exemplo até já desenharam equipamentos específicos para as atletas). Esperemos que os clubes também apostem na adequada profissionalização e no pagamento de remuneração justa (as jogadoras de topo, como a Marta ou a Ada, não ganham mais de 1%, por exemplo, do salário de Neymar).
A 8.ª edição do Mundial Feminino de Futebol bateu, logo em abril, o record dos bilhetes vendidos: 720 mil. A FIFA espera que o evento seja seguido por um bilião, em mais de 135 países. Todas as expectativas para o Campeonato de 2019 têm sido largamente ultrapassadas, quer em termos de audiências, quer no inevitável retorno comercial.
Finalmente, uma palavra sobre a forma como nos referimos ao evento: Mundial Feminino de Futebol, ou Campeonato Mundial Feminino de Futebol, porque o futebol é igual, com as mesmas regras, apenas mudando o sexo dos atletas (não Campeonato do Mundo/Mundial de Futebol Feminino), e porque não se refere apenas ao universo feminino (não Campeonato de Futebol do Mundo Feminino). Facilitada está a questão para os brasileiros: “Copa do Mundo de Futebol Feminina” ou “Copa do Mundo/Mundial Feminina“.
O Mundial de 2019 é já histórico. Pena é que em Portugal se passe ao lado.
Alguns jogos podem ser vistos na RTP Player.