carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Da primeira não lembramos, mas por alguma razão o mergulho em água morna nos é tão familiar e os ruídos desfocados que nos chegam lá abaixo, nos confortam e consolam tanto.
Casa: “local” onde pertencemos, onde nos encaixamos, onde tanto podemos estar em festa como em silêncio. Onde nos é permitido sermos nós e ainda assim, esquizoides que somos todos e de forma tão particular, sentirmo-nos adequados e em paz.
O “sentirmo-nos em casa” não depende de um local, de um quadrado de betão com paredes e portas e janelas, mas de pessoas. São difíceis de encontrar esses espécimes que nos fazem estar tranquilos na nossa própria pele, com quem se está bem em silêncio, a quem não temos de explicar coisa nenhuma. São as Casas-Gente – aparecem a espaços, encontram-nos, não se procuram.
Há dois anos que tento construir uma Casa: um espaço físico feito de gente, que seja cada vez mais abrangente, mais alargado, mais vivo, mais vivido. Uma Casa colectiva, onde pouco importa o material do tijolo ou a cor das paredes. A Casa quer-se abrigo, local de passagem ou de permanência, cumprindo a função de nos fazer sentir um nadinha mais adequados, mais em paz, acolhidos.
Uma casa onde todos “andem espantados de existir”**, porque se assim não for, o que raio andamos aqui a fazer?
Casa onde a pintura, os livros, teatro, música fossem bem-vindos, sem intelectualismos ou elitismos bacocos, mas também sem medo de palavras compridas, porque que mal há em aprender coisas novas? E porque raio temos tanto medo de aprender coisas novas? Que o cérebro atinja a capacidade máxima e deixe de reter informação? Conheço pessoas a quem parece que isso aconteceu, mas desconfio que tenha sido por aprenderem de menos.
A casa pensada e projectada ainda anda lá longe. Às vezes faz-se miragem e parece mesmo pertinho, à distância de uma mão. Mas ainda não a conseguimos agarrar. A sensação é a de que a vida é demasiado rápida ou nós somos demasiado lentos e às vezes era mesmo necessário que tudo parasse para procedermos a algumas actualizações, terminar o que está a meio, refazer o plano e depois, sim, carregar num botão e prosseguir.
Quer-me parecer que construir uma Casa assim exige um rumo certo, um pulso firme, uma certeza no caminho, uma rota constante que ainda não encontrei. Não pode ser um problema de idade: já não tenho idade para usar a idade como desculpa. Talvez tenha perdido demasiado tempo encantada com janelas que eram só decorativas e nunca foram feitas para abrir.
Mas agora que encontrei a Casa e algumas das janelas que procurava, parece-me que não descanso enquanto não as abrir todas. Ainda que possa incomodar alguns vizinhos. Não faz mal ter vizinhos chatos, faz parte. São os que não sabem ou não entendem o que acontece lá dentro. Os que ainda não perceberam que afinal somos todos estranhos e não faz mal. Os que não sabem que há noites em que as pessoas ficam verdadeiramente felizes, que os corpos se soltam e dançam de forma aprumada ou desordenada, a maior parte, para ser sincera, de forma bastante esquisita, mas não faz mal. Há os que ainda só vão lá para ver, ficam sentados ou encostados às paredes, observando, invejosos dos movimentos e das gargalhadas dos que já perceberam que ali não faz mal ser esquisito ou diferente ou sentir-se desadequado. Somos todos! É naqueles poucos metros quadrados que as probabilidades de encontrar alguém igualmente desadequado são mais elevadas.
A Casa que está de pé pode até ter a cor errada nas paredes, mas caramba! garanto-vos que tem as melhores casas-gente do mundo. Pode faltar-lhe o glamour, as purpurinas, mas encontrei lá gente tão esquisita como eu. E vamos lá a ver, há que dizê-lo com frontalidade: somos todos esquisitos, de forma particular, individual e intransmissível, mas ainda assim, esquisitos. E se o somos todos, então ninguém é. E que maravilha é poder ser esquisito em voz alta, em corpo dançante, em pés malandrinhos e ombros ondulantes.
Tudo o que está de pé foi ali pregado, pintado, colocado, carregado, construído pelas mãos das melhores Casas-gente, Gente-Abrigo, portos seguros do mundo. Eles são o garante de que a Casa é verdadeiramente uma Casa, um abrigo. Constroem todos os dias, tornam cada vez mais próxima a miragem da Casa de todos, que foi projectada há dois anos atrás.
Às Casa-gente que vão erguendo a Casa, um brinde. À gente que ainda não encontrou casa, podem vir. A nossa Casa é de todos e todos os dias construimos uma janela. Das que abrem.
** “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir” – José Gomes Ferreira