carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Aconteceu-me no outro dia:
Deixei as chaves em casa.
Fechei a porta.
A porta que dá para a rua estava também trancada.
De um lado a porta de casa: fechada, do outro a porta da rua: trancada.
Encurralada.
Parti o vidro da porta de casa, pois.
Precisava de entrar, precisava das chaves para sair.
Sou desenrascada.
Agora tenho uma janela
Que não se pode fechar é certo, mas sempre entra o ar.
E até vir o frio a sério, gosto que o ar circule.
O ar é bom, faz-me falta. Para respirar. O tempo todo.
E preciso ainda mais quando me canso, quando me assusto, quando sufoco com alguma coisa e uma respiradela mais funda resolve o assunto
Preciso dele quando os números me assustam:
mais de 2300 detidos e
milhares de feridos
em Hong Kong
3 mortos
no Chile;
579 feridos
5 olhos perdidos
na Catalunha;
1304 feridos
no Equador;
29 mulheres assassinadas até 4 outubro
em Portugal
Protestos, manifestações nuns casos.
Noutros, revoluções a precisarem urgentemente de ser feitas.
2 em cada 10 pessoas são pobres
em Portugal
51,4% abstenção
E quem não acha que isto anda tudo ligado, bem enganado anda.
É como se estivéssemos encurralados entre duas portas para as quais ninguém tem chaves. Mas, se as portas não abrem, é inevitável: uma nova janela tem de nascer! Há que partir um vidro para o ar voltar a circular! Somos desenrascados.
E é mais que certo: as correntes de ar hão-de ser muitas, os papéis vão voar, havemos de ter frio e maldizer a ventania que nos apaga os isqueiros, mas caramba o ar é coisa que faz muita falta.
Haverá uma altura em que o vendaval se vai tornar demasiado e os cabelos emaranhados vão ser um problema. Quando começarmos a esquecer a falta de ar e o inevitável cheiro a mofo, alguém vai querer remendar a janela e fechá-la definitivamente. E não faz mal. Também é bom viver com o cabelo alinhado.
O fundamental é garantir que uma porta fica entreaberta. Ou encostada.
Nunca se sabe quando vamos precisar de uma respiradela mais funda.