Cantadeiras

à primeira segunda do mês

Sónia Moreira Cabeça

Celebra-se este mês mais um ano do reconhecimento do Cante Alentejano como Património Cultural Imaterial da Humanidade por parte da UNESCO. Momento marcante da história dos modos de cantar alentejanos, esta valorização foi sentida por todos os que se identificam com a cultura alentejana e com o Alentejo. E são, de facto, muitos. É o caso dos grupos corais organizados fora do espaço geográfico do Alentejo, que se chamam a si mesmos de “alentejanos” ou de todos os que, por serem naturais do Alentejo, se consideram portadores desta forma cultural única.

A mobilização dos cantadores e dos alentejanos no geral em torno da candidatura do Cante, demonstra a existência de uma base inicial comum a partir da qual é possível avançar em torno de um objetivo. O Cante é de todos e assemelha-se aos seus. O Cante tem rostos. Mas não tem género. Por fim, parece desmontado o equívoco.

Foi há mais de 10 anos que comecei a estudar o Cante Alentejano. Percorri muitas aldeias, vilas e cidades para falar com cantadores e cantadeiras. Afinal, o que é o Cante Alentejano? Mesmo sem perguntar, muitos tentaram explicar-me. Ouvi com perplexidade que o Cante das Mulheres, esse, “é outra coisa”, “coisa nova”. Como assim? Pode um canto que outrora fez parte do quotidiano ter género?

Senti então a necessidade de escrever sobre as Mulheres no Cante. Afinal, apagáramos da memória um tempo em que o Cante não era restringido à sua imagética mais poderosa: o grupo coral. E o canto que embalou gerações? As modas nos trabalhos agrícolas? Nas festas e romarias? Esquecemos. Confundimos os modos de cantar com os modos de organizar o canto e do Cante apenas retivemos a imagem de um grupo coral, organização inventada num tempo muito restritivo em que nem todos os espaços de sociabilidade eram acessíveis às mulheres. Não: o que é “coisa nova” é a invenção dos grupos corais. Arredadas do espaço público, social e cultural, a maioria das mulheres não teve, como hoje, oportunidade para participar no movimento coral no tempo em que este foi inventado. Mas tal não retira a Mulher do Cante ou apaga a sua voz. Cantava-se e cantou-se no Alentejo na maior variedade possível de contextos e é difícil encontrar algum deles em que o Cante não pudesse estar, e de facto não tenha estado, presente.

Creio que hoje a visão do Cante enquanto um conjunto de maneiras de cantar com modos de execução diversos é consensual. É esse o património inscrito na lista UNESCO. A Mulher não é coisa nova no Cante: sempre lhe pertenceu e, repostos os factos, ocupa hoje o seu devido lugar na história do Cante e do Alentejo. Senti algumas vezes essa frustração de ver o meu discurso reduzido a uma espécie de defesa das Mulheres. Um equívoco: não se trata de mudar a história ou querer entrar no Cante à força; trata-se de reconhecer a história recusando o discurso enviesado e reassumindo a participação plena das Mulheres no Cante.

Apesar desta mudança de perspetiva, anseio ainda pelo dia em que a comunidade do Cante reconheça plenamente o papel e a capacidade das Mulheres cantadeiras. Nesse dia, a cantadeira excecional, que orienta, que ensina, que conhece o Cante e as suas maneiras de cantar, será chamada de Mestre. Faltam Mestres no feminino, embora não faltem mulheres cujo elevado grau de conhecimento deva ser reconhecido pelos seus pares. Para quando uma Mulher Mestre? É esse o caminho que temos que percorrer. Nesse dia cumpriremos o que o estatuto do Cante, Património Cultural Imaterial da Humanidade, nos obriga a assumir: o Cante é de todos e assemelha-se aos seus. Não tem género: tem rostos.

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