excorgitações
Sofia
Antes que as minhas amigas fiquem gramaticamente ofendidas por chamar “diário” a um texto que pretende sintetizar um mês inteiro, rogo-vos que me permitam alguma liberdade poética e, sobretudo, compreendam que esta quarentena tem sido um dia infinito sem o charme de nenhuma aurora boreal.
Por outro lado, percebam que este texto é um ato de contrição, um desmentido público, cinco quilos depois de no mês passado ter nesciamente escarrapachado no papel tão tolas palavras de otimismo sobre a prisão domiciliária a que fui inocentemente condenada pelo estupor do vírus.
Admito: achei graça aos primeiros dias. Li como uma doida, cozinhei como um chef, recuperei sonos perdidos e asofisei mais um pouco a minha casa. Mas, bastou uma semana para perceber que não estava logisticamente preparada para a quarentena.
Desde logo, rapidamente conclui que tenho demasiada lingerie e poucos pijamas, que no primeiro fim-de-semana me arrependi das gargalhadas que ao longo dos anos dediquei às gajas que vestem fato-de-treino e, salvo erro, no primeiro dos domingos invejei todos os proprietários de cães do mundo em particular e da minha rua em geral.
Hoje, escondida na varanda, fico roída de inveja das vizinhas que andam de pantufas e pijamas da primark a passear os animais pela rua e pondero pedir um cão emprestado (mas, sou menina para levar o meu negligé vermelho, porque afinal de contas estou de quarentena mas ainda sou gaja e aquele vizinho do segundo direito é demasiado giro para me transformar em freira no pós-covid).
E sim: para ter um pretexto para desfilar na varanda, bati palmas a médicos, enfermeiros, bombeiros, padeiros e dois ucranianos que têm estado a reabilitar um apartamento no prédio da frente. Vou um dia por semana ao supermercado, mas o outfit é mais ponderado e arrojado do que nos inesquecíveis tempos da kadoc e, pela primeira vez em duas décadas de mulher adulta, penso que foi um erro não ter casado.
Solteira e solta, quem neste mundo me vai pintar a porcaria do cabelo?