carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Ana Ademar||Expoente M Rádio
Caros ouvintes
Encontro-me a esplanar no epicentro da nossa belíssima cidade de Beja.
Como companhia tenho pombos e pardais (que podiam ser menos). Ao longe num dos bancos da praça está um imigrante que saúda um outro, vindo da Rua da Moeda e segue em direcção à Igreja da Misericórdia.
O senhor Bento que deve andar perto de celebrar o centenário, dá um dos seus muitos passeios diários, enquanto desbarata coisas que não percebo.
Do outro lado da praça, deitado num banco, em posição de perfeito relaxamento, outro imigrante fala ao telefone.
Imaginemos, caros ouvintes que conversa com a família, que lhe conta as maravilhas que encontrou por cá. Imaginemos que, algures na Índia ou no Bangladeche, a esposa, que rondará os 30 anos, e os três filhos pequenos ouvem em directo os sons de fundo da Praça da República, em Beja: os pombos, os pardais, os malditos carros que teimam em não parar de passar por aqui, os cumprimentos em línguas que não entendemos, mas percebemos a gentileza do som.
Neste momento, em que passamos ao terceiro parágrafo, já a Praça recebeu mais imigrantes e velhos, uns mais dobrados ao meio que o senhor Bento, mas de máscara, como manda o figurino. Reparo agora que num dos bancos está um casal de idosos: ela olha em frente e pensa na vida e ele está absorto a olhar para o telefone. Dois chineses de máscara e bluetooth atravessam a praça falando excessivamente alto – deduzo que seja da máscara, acontece-me o mesmo, com ela posta deixo de ouvir os outros e a mim própria.
Mais à frente, uma mulher nos seus cinquenta anos, caminha enquanto fala ao telefone. Deixou a mala, a carteira e o café a arrefecer na mesa. Dois negros vestidos de cores vivas partilham um banco, não porque não haja mais, mas porque está à sombra. Num terceiro banco um jovem que procura identificar-se perante a sociedade como delinquente, mas que provavelmente não o é, olha para o telemóvel.
E eis que entra em cena o maluquinho de serviço que usa uma colher de pedreiro como telefone. Não percebo o que diz, mas está animado com a conversa e faz questão que o percebamos, nós os caros ouvintes e espectadores.
É domingo.
Que bonita está a nossa cidade, que bonito é haver negros e castanhos, amarelos e velhos dobrados, velhos enxutos, loucos, novos com aspiração a gangster e outros mais conformados em ser escriturários.
Há em mim uma esperança renovada. E sei exactamente o momento em que se renovou: na sexta-feira, dia 18 de Setembro, por volta das 20h15, em Évora, na metade da Praça do Giraldo que foi atribuída a mim e aos meus companheiros. Penso que foi ao segundo verso da “Grândola”. As colunas no primeiro andar davam o mote e o tempo, as vozes sobrepunham-se e os cravos vermelhos de papel (que não há dos outros) dançavam nas mãos. Um grupo de mulheres loiras e homens de calça caqui, duas bandeiras monárquicas e tochas acesas (as mesmas que estacionaram aqui há uns tempos à porta da SOS Racismo e que integravam a paisagem da Itália de Mussolini) entravam na mesma praça, na metade deles (a da Igreja de Santo Antão, pois claro!). Bom, tenho de ser justa: no caso das mulheres nenhuma era loira de origem e os homens não estavam todos de calças caqui, havia também algumas calças vermelhas. Há várias questões que se me levantam, nomeadamente esta: querem a 4ª república, mas com um rei?! Enfim… não tenho pretensões nem vontade de compreendê-los.
Mas dizia eu, caro ouvinte: é domingo. A Praça da República começa a dar ares de cidade cosmopolita, as cores vivas dos (ainda) poucos saris que aparecem alegram-me a vista, mesmo quando o sol se esconde, a palidez dos velhos alemães contrasta com a negritude dos senegaleses, o café é bio e saboroso e a esperança será sempre renovada de cada vez que um grupo de gente encha metade de uma Praça, cante a Grândola e me faça falhar a voz ali um ou dois versos, porque o soluço se impõe. E mesmo perdendo esses versos para a emoção, conseguimos abafar os sons cinzentos e bafientos saídos de uma qualquer porta de Igreja, que coitada, não tem como fugir a ser pano de fundo a um grupo de abutres rançosos.