Diz-se criada na aldeia, alentejana de nascimento e vocação, sem nenhum talento em especial, tendo como passatempo preferido sentar-se e ver acontecer a vida.
É jurista, integra a associação Arruaça, é uma das curadoras da Senhora de Mim||Exposição no Feminino, e, uma vez por outra, gosta de passar música.
Nádia Mira assinou, ao longo de 52 semanas, “o amor à sexta-feira!” no Expoente M, partilhando músicas e histórias a elas associadas, sempre com um olhar e sentir muito próprios, e é a senhora que segue.
Nádia Mira||Expoente M Rádio
Tens a vida que idealizavas?
O ideal, por definição, pertence ao domínio do imaginário, do quimérico e eu tendo a ser uma miúda pouco imaginativa, pelo que me resta ir vivendo ao sabor da realidade e das suas circunstâncias.
Ainda hoje continuo a questionar amiúde os caminhos que escolho e onde colocar as metas, estou, portanto, muito longe de idealizações. Mas vivo a vida que tenho com paixão, para o bem e para o mal.
Ainda assim, posso afirmar que sou hoje a pessoa que desejava ser quando comecei a desejar ser alguém e isso é capaz de me deixar mais próxima de viver uma vida, não diria ideal, mas feliz.
A intervenção/participação na sociedade deve ser uma preocupação de todos?
À partida diria que sim. Porém vejo tanta intervenção que é ou desajustada, ou contraproducente ou simplesmente desprovida de qualquer sentido que fico na dúvida.
Obviamente que considero que a participação na sociedade deve ser uma preocupação de todos, porém, os participantes/intervenientes nem sempre têm algo de benéfico a acrescentar, quer seja na forma quer no conteúdo, e por vezes assistimos a um “intervencionismo” algo selvático. Alguém achar que pode ter um contributo válido a dar, não torna esse contributo válido, per si. E hoje parece que todos temos que intervir em algo, quer tenhamos ou não valia a acrescentar.
O que dizer da intervenção das personalidades que se manifestaram publicamente contra a obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania? É uma intervenção legítima na sociedade? Sim. É benéfica? Nem um pouco.
Por vezes, temo que o “ruído participativo” afaste da discussão as pessoas cuja intervenção faria maior e melhor diferença.
No teu caso como a praticas?
Confesso que não sou uma ativista, não tenho esse perfil. Mas não sei viver sem que as minhas convicções e ideais transpareçam em todos os meus comportamentos.
Creio que a minha participação ativa na sociedade se efetiva, sobretudo, através da minha profissão. Sempre soube, enquanto estudava, que era no público que queria exercer. Acompanhava-me a convicção de que só estando por dentro do sistema poderia dar um contributo para o melhorar. E efetivamente, trabalhando numa autarquia, tento sempre que aquilo que faço seja um contributo no sentido de construir um sistema mais justo e equitativo, que coloque as pessoas em primeiro lugar e que tenha na legalidade um escudo na defesa dos interesses coletivos, sem esquecer o individuo.
Por outro lado, sempre que me é possível e que tenho essa vontade, tento participar em projetos de âmbito social ou de promoção da cultura, como acontece na Arruaça (uma associação com 15 anos de existência que, apesar das crescentes limitações com que se depara, continua firme nos seus propósitos) ou no projeto Senhora de Mim, que tenho o gosto e privilégio de partilhar contigo.
Ainda assim, considero que é sobretudo no comportamento diário que a diferença se faz. Porque teoria e a prática nem sempre são coincidentes. Vejo, por exemplo, muitos “agitadores de bandeiras” na defenda da cultura que nunca ou raramente encontro nos eventos culturais ou mesmo muitos “ativistas” pela igualdade que continuam a perpetuar comportamentos sexistas básicos.
Também por isso, tenho cada vez menor propensão para sobressaltos voluntaristas ou inclinações de espírito alavancadas por idealismos. As minhas convicções e ideais, no entanto, permanecem intocáveis e todos os dias saem orgulhosamente comigo à rua.
Como vês a conciliação, atualmente, da vida profissional e familiar/social?
Pessoalmente, e até nas pessoas com quem mais me relaciono, vejo poucos problemas de compatibilização. Obviamente que sei que existem, mas a minha visão será sempre condicionada pelos óculos riscados do privilégio.
Se há mães e pais que são obrigados a trabalhar demasiadas horas para poderem dar uma vida digna aos seus filhos, e a esses é efetivamente colocada uma dificuldade a essa conciliação, outros existem cuja ambição na vida profissional faz com que descurem a vida social/familiar e essa é, em última análise, uma opção.
Pelo que as dificuldades na conciliação não têm todas o mesmo valor.
Na tua vida existe equilíbrio entre a vida profissional e familiar/social?
Comparativamente a outras mulheres a quem se pode facilmente atribuir o epíteto de guerreiras, a minha vida é muito fácil e com poucos desafios no que respeita a conciliações. Sou uma mulher solteira, sem filhos, com um trabalho com horários standard e descanso aos fins-de-semana.
Se por um lado tenho dificuldade em tirar de mim a Nádia-jurista, por outro, também por força das opões que tenho tomado, não me é exigido que desempenhe diversos papéis em simultâneo e que o faça sem queixumes. Desse ponto de vista assumo esse privilégio que, verdade seja dita, procurei para mim mas que lamentavelmente é negado a inúmeras pessoas, especialmente mulheres, cuja condição social e familiar não oferece escolhas.
Já sentiste que a tua afirmação profissional e/ou pessoal foi dificultada ou condicionada por seres mulher?
Nunca me senti condicionada por ser mulher… ainda.
Para além de ser mulher reúno uma série de “qualidades” pouco entusiasmantes para certos setores da sociedade e o mundo do Direito, por exemplo, ainda é bastante conservador. Até agora não tenho sentido bloqueios por questões de género, de orientação sexual, ideológicas ou mesmo de estilo de vida. Mas atentando à “desevolução” a que vamos assistindo nos últimos tempos, confesso que sinto que já estive mais longe de o experienciar.
As mulheres partilham pouco, guardam muito para si?
Nunca coloquei a questão nesses termos, mas não considero que a necessidade ou propensão para a partilha dependa, de alguma forma, do género. Conheço mulheres que partilham muito e outras que são mais reservadas. Eu sou das que partilha, aprendi cedo que falar ajuda.
O que é preciso para que as mulheres possam ver garantido o seu direito à igualdade?
É necessário ter sobretudo consciência de que esta continua por garantir. A igualdade consiste na pedra angular de toda a sociedade democrática que aspira à justiça social e à realização dos direitos humanos. Em praticamente todas as sociedades e em todos os domínios de atividade, as mulheres são vítimas de desigualdades de direito e de facto. E se nas sociedades ocidentalizadas, no que respeita à supressão das desigualdades sociais e económicas se tem feito um longo caminho nos últimos anos, a verdade é que no que respeita à moral social continua a recair sobre a mulher uma exigência exponencialmente maior do que sobre o homem.
Acresce que o conceito de igualdade é pluridimensional e creio que isto é uma concepção difícil de compreender para algumas pessoas. A igualdade cega de tratamento de sujeitos que não se encontram na mesma situação contribuirá para perpetuar a injustiça, em vez de a eliminar. Pelo que é necessário ir um pouco além.
Não tenho resposta para o que é preciso para que as mulheres possam ver garantido o seu direito à igualdade, mas acredito que ter mais mulheres, e mulheres como tu, nos lugares de decisão, nos deixará mais perto.
Como podem as mulheres contribuir para a concretização dessa Igualdade?
Como referi anteriormente é necessário que haja consciência de que continuamos numa posição de desvantagem. Porém, é preciso lembrar que se existem mulheres que podem contribuir para a concretização da igualdade, muitas outras que não têm quaisquer meios ao seu dispor para o fazer. E é necessário que tenhamos essa realidade bem presente.
Mas como já mencionei, creio que ter mais mulheres nos lugares de decisão nos deixará mais perto dessa concretização.
Qual é o teu maior sonho?
Talvez por ser pouco imaginativa o meu universo onírico é muito pobre. E isso de nos andarmos a ocupar com sonhos retira-nos tempo ao viver, ao desfrutar com paixão das pessoas e acontecimentos que fazem a parada subir de interesse.
Não gosto de gastar tempo com distrações oníricas, prefiro andar ocupada a viver apaixonadamente aquilo que nem ousei sonhar.
E o sonho só pode ser esse – continuar a ter vontade de viver apaixonadamente.