carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Ana Ademar||Expoente M Rádio
Lá fora o tempo está bera: o céu nublado e há uma chuvinha que não se vê, mas que se faz sentir na roupa colada ao corpo.
Dentro de casa a pessoa está confortável com um casaco, o frio não justifica ligar o aquecedor, mas se houvesse lareira… Ah! Quem é que fica indiferente ao consolo de uma lareira acesa? Não por causa do frio que já disse, não incomoda, mas por causa do fogo e do efeito hipnótico que tem, porque provoca um calor que vai além da necessidade de aquecer pés e mãos. Dá um conforto cá dentro que cobertor nenhum pode prover.
Aqui por casa não há fogo, excepção feita ao piloto do esquentador que se diz inteligente. E não há quem possa negar as propriedades curativas de um banho quente. Propriedades essas elevadas exponencialmente se, depois do banho, vestirmos um pijama lavado (ou o que lhe faz as vezes) e nos deitarmos numa cama feita de fresco aromatizada com sabão de marselha, tendo o aroma origem num qualquer detergente cujo manuseio da embalagem obriga ao uso das duas mãos, devido ao tamanho exageradamente grande da mesma. Todo o procedimento que acabámos de descrever, está provado, oferece grande consolo a corpos cansados e a mentes cheias que não alcançam descanso.
Estarei eu a usar da prepotência quando falo na primeira pessoa do plural como se estivesse em representação de um exército de eus? Provavelmente, mas quem é que vai prestar atenção a isso? Nós, não.
Falávamos de prazeres que nos consolam e a questão impõe-se: para que precisaremos nós de consolo a esta altura das nossas vidas?
Eu diria: do vazio.
Há vários tipos de vazio e há os bifes da vazia que não são para aqui chamados e que se as coisas continuarem assim, não voltaremos a provar tão cedo, porque a vida não está fácil e um dos vazios mais prementes é o da carteira. Mas falemos de vazios menos comezinhos, mais metafóricos, dos que nos enriquecem a poesia.
O vazio dos espaços: cafés, restaurantes, ruas, praças. Silêncio. Cafés onde o bater do manípulo da maquina do café não soa, as chávenas e pires não chocam entre si, restaurantes onde os talheres não batem uns nos outros nem raspam no fundo do prato, praças onde não há nenhum tolinho a falar ao telefone numa pá de pedreiro, uma criança a gritar porque perdeu o controlo da trotinete ou um traficante anunciando aos clientes que chegou.
Silêncio nas ruas.
Ontem vi a praça vazia e as ruas vazias e as estradas vazias e da janela só chegava silêncio e percebi que os dois andam de mãos dadas. E decidi escrever sobre o vazio e sobre o silêncio, mas depois o frio meteu-se na conversa e só agora, com a descoberta da frase do Renato Russo que dá título a estas linhas, é que percebi que o vazio, além do silêncio, faz-se acompanhar pelo frio. E foi isso que me fez pensar em fogo e banhos quentes.
E o vazio que está agora em todo o lado, comove-me e ofende-me. E faz-me ter medo, porque pergunto-me se, na felicidade de sobrevivermos à doença, sobreviveremos nós à cura?
muito bom
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