Batota ou Como Às Vezes as Pessoas Demoram a Aprender Lições

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carrossel dos esquisitos

Ana Ademar

Ana Ademar||Expoente M Rádio

Este texto foi originalmente publicado em Fevereiro de 2012 no Correio do Alentejo. Acontece que enquanto escrevia o “carrossel dos esquisitos” deste mês, uma das frases soou-me muito familiar. “Querem lá ver que isto já foi escrito?!” Pesquisei e encontrei o que aí vai. É um bocadinho batota apresentar aqui um texto já publicado, mas se o que queria dizer se aproxima tanto disto, o que é que posso fazer?

Ainda que a dificuldade em desacelerar já não seja a mesma, porque passaram quase nove anos e as juntas e articulações começam a acusar o excesso de uso, continua a ser-me muito familiar a sensação de querer tudo já, pensando que poupo tempo, para perceber depois que a perda de tempo está em querer acelerar todos os processos.

 

O tempo é uma coisa esquisita. E o uso que fazemos dele. E quando nos escorre dos dedos. E quando custa a passar. E o tempo de sono que determina como o dia nos vai correr. E o tempo que usamos para cumprir certas tarefas. E as tarefas que queremos aceleradas e não conseguimos. E o tempo que nos resta para coisas que gostamos e o tempo que perdemos com coisas que não gostamos. E o tempo que dispensamos aos outros e o tempo que queremos que os outros nos dispensem a nós. E esse maldito que é sempre curto quando é bom e tão longo quando é mau. A rapidez com que nos exigem que façamos as coisas. Que nos exigimos. Que o mundo exige. E tão poucas vezes nos surpreendemos com a nossa rapidez e eficácia e tantas vezes nos frustramos por não vermos satisfeita a exigência do mundo que funciona à rapidez de um clique. A falta de tempo. O tempo que falta sempre para as coisas boas. Que nos dão prazer. Que eu adio (adiamos) porque não são importantes (?!).

Aflige-me a perda de velocidade. Sou rápida, luto pela rapidez, acelero sempre que posso. Perco mais tempo a tentar ganhar tempo, que o tempo que perderia se fizesse as coisas com calma. Angustia-me a lentidão alheia. E a minha. Os dias que me correm mal são os dias em que não acompanho com o corpo a velocidade da cabeça. E quero escrever coisas e parece que as teclas das letras erradas se jogam para a frente dos meus dedos. E apago muito rapidamente aquilo que não queria escrever e o computador bloqueia, e eu, em vez de esperar, começo a carregar no enter e a passear o rato pelo ecrã e ele… bloqueia mais um bocadinho… Não tenho tempo para ter paciência.

Um dia destes, aconteceu-me ir com pressa. Foi quando a vi pela primeira vez. Eu ia à pressa a conduzir o meu carro que, coitado, não é tão veloz quanto aquilo que eu preciso que ele seja e por isso me irrita. Mas eu ia de carro e tinha pressa e de repente o trânsito parou: era ela, para quem o tempo é outro. É muito e é pouco. Ela dá uso ao tempo. Usa o dela e pára o dos outros. A malta sai do trabalho, vai a correr buscar os miúdos, compra o que falta para o jantar, tenta ganhar uns minutos no sofá antes de adormecer. A malta acelera o carro para compensar o tempo que já perdeu. E no cruzamento: lá está ela. Quatro estradas que se cruzam e dezenas de carros apressados, que param para a ver passar. À frente, o andarilho mal descola do chão a cada passo – os braços já não podem, já tiveram o tempo deles. E apesar da lentidão dos braços, as pernas mal acompanham essa rapidez. Os pés nunca perdem o contacto com o chão, num arrastar forçado pela falta de uso dos joelhos. As pernas são pesadas, pesadas… Quatro estradas que se cruzam, quatro filas de carros, em hora de ponta. Carros parados, condutores apressados… Mais eficaz do que um semáforo, ela faz parar o trânsito.

E ali ficam, dezenas de pessoas sem tempo, aparentemente serenas, à espera que ela cumpra a missão: chegar ao outro lado da estrada. Ninguém se atreve a apitar, ninguém sopra impaciente, ninguém amaldiçoa a senhora que demora dez minutos a passar a passadeira.

E quando a vejo, não lhe dou atenção. Percebo que vou ficar ali um bom bocado e começo a fazer uma lista mental do que me falta fazer e como vou fazer. E olho novamente para ela. Já atravessou um quarto da estrada. Fico a observar o movimento lento, a falta de pressa (e se a houvesse, que diferença faria?) e há qualquer coisa de estranho naquela mulher. Descubro rapidamente o que é: não há um sinal de frustração no rosto. Como se fosse normal! Chocou-me não lhe ver pressa nos olhos ou culpa, por obrigar o mundo a parar cada vez que decide atravessar uma estrada. Leva um rosto tão sereno, tão tranquilo que provavelmente ia a pensar em coisas boas, talvez no jantar que levava no saco, pendurado no andarilho.

E de repente é isto que me ocorre: ela tem o tempo dela, mas eu não tenho o meu. Penso na minha pressa, na minha velocidade e no dia em que já não me servir para nada. No tempo que perco a querer ser rápida. Sei que vou ter de perder a pressa, vou ter de desacelerar para poder ter tempo – será que isto faz sentido?! O que não faz sentido de certeza é a velocidade com que atravesso a estrada, a estupidez da corridinha pela passadeira, quando sei, como ela sabe, que o lado de lá vai estar sempre à minha espera.

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