Dormindo com Kafka IV

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à primeira segunda do mês

Filipa Figueiredo

O Diretor da empresa onde trabalhava a menina M. tinha subido a custo na vida. Esforçou-se, desde muito cedo, em ser militante de um dos partidos políticos com maior aspiração ao poder. Este esforço, hercúleo, contribuiu para enriquecer de forma notabilíssima o seu currículo e alargar uma invejável rede de contactos. Os saraus, tertúlias e jantares foram durante anos e anos a cadeira de estudo, empírica, que escolhera para desenvolver, cientificamente, o seu estatuto. Era um homem calvo, redondo, com alguma proeminência na barriga, de palidez romântica, patriota e defensor dos bons costumes. Em tempos de pandemia, confinado, com os seus funcionários em lay-off, continuou a desenvolver a sua network, pois o progresso há muito que lhe entrara à força pela porta adentro. O diretor da empresa onde trabalhava a menina M, começava agora a dominar todo o tipo de redes sociais, assim como as verdadeiras estratégias de marketing e publicidade, que lhe permitiam disseminar a aparência de uma empresa de sucesso no mercado. Dedicava-se à criação de perfis falsos, nada ilegal, era apenas um processo de operacionalização para colorir e ornamentar a imagem da sua firma. E como todo o mal e todo o bem são exclusivamente de caráter moral, as suas mãos no teclado soavam ao célebre anúncio da Regisconta. Desmultiplicou-se em variadíssimas pessoas, interiorizou cada uma com a rapidez de um clique. Deu-lhes nome, vida, caráter e, está claro, um novo emprego. Cada verdadeiro e seu fiel alter-ego, atingia sempre os 5000 amigos. Não discriminou género, só raça, seja lá o que isso for. Convinha que os seus amigos e amigas, transparecessem os bons costumes, o patriotismo e a clarividência pura dos seus ideais. O diretor da empresa, onde trabalhava a menina M., era solteiro, ainda não tinha encontrado a mulher perfeita, uma mulher honesta, que só se entregasse às tarefas domésticas e não questionasse as suas convicções. Sozinho, dentro de quatro paredes, com a cara redonda enfiada dia e noite num ecrã, interagia com os seus alter-egos e cativava milhares de reações por dia, assim como novos seguidores. Nunca antes do confinamento tinha sentido aquela estranha sensação. Por cada like que recebia, o seu lado esquerdo do peito, badalava ao ritmo do som do teclado. Todas as partículas subatómicas do seu corpo reagiam a um fenómeno de interação eletromagnética, sentindo vibrações elétricas e vapores quentes, que lhe iam da unha do pé, passavam pela coluna, até chegar ao cérebro, provocando-lhe um cálido suor, pastoso e amarelado, que lhe pintava as faces arredondadas e lhe desenhava um enorme sorriso. Ora este fenómeno era recorrente, pois a suas publicações, replicadas pelos seus alter-egos, eram na sua essência clikbaits, teorias da conspiração ou desinformação. Na rapidez do ciberespaço em que navegava, não havia tempo para questionar, comparar ou pesquisar fontes, só para criar novos conteúdos, meias verdades ou descontextualizações, que tivessem o poder da manipulação, pois a concorrência era bastante fervorosa e o senhor diretor era um empreendedor. Ressoavam as 12 horas em ponto, e nesse dia a ubereat entregava o almoço no seu apartamento, a porta estava encostada e o jovem de máscara e capacete, que trazia o repasto e que estava farto de esperar, decidiu seguir a claridade e a nuvem de curto-circuito que vinham do escritório do senhor diretor. Qual não foi o seu espanto quando se deparou com um holograma, de um grande emoji amarelo e sorridente, que lhe agradeceu a pizza e lhe indicou onde estava o dinheiro. O rapaz aliviado, fechou a porta e seguiu caminho e o senhor diretor deliciou-se com a felicidade eterna, partilhando o almoço com os seus amigos, pois viver só consigo mesmo é perigoso, a solidão pode ser um gatilho pior que o da multidão.

Ler: outras crónicas da autora
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