A Louca da Casa
Carmo Miranda Machado
Não, meu amor, eu nunca vou à Ovibeja. Como sabes, opto antes por ir ver outras cabras, daquelas que se penduram nas árvores, meu amor, ali mais a Sul, nessa terra tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto do nosso Sul, onde as pessoas falam numa língua que parece não ter vogais, tão diferente do nosso falar alentejano, doce e arrastado. Mas as semelhanças com o nosso Sul são tantas e colocam-se à minha frente, a cada passo do meu caminho solitário.
Vou a Marrocos como quem vai a Évora ou a Portalegre. Sinto-me em casa lá, como no nosso Alentejo. Todas as manhãs, a mesma dolência no acordar, a mesma cadência dos dias que passam devagar, a mesma fuga ao Sol, meu amor, como nós fazemos na planície. Em Marrocos, percorro as terras e as gentes, quantas vezes a única europeia num autocarro repleto de marroquinos em oração. Por estas terras, nesta baía onde me encontro e onde o Sol me agarra como se me amasse, cumpro os mesmos rituais que cumpríamos quando eu e tu éramos felizes e dávamos longos passeios por estradas íngremes ladeadas de árvores orgulhosas e pássaros tímidos. Porque há instantes que não são fugazes. Lembras-te, meu amor? Diz-me, como é que nos livramos deste vício do Sul?
Agora, aqui sentada neste canto africano, num vilarejo igual a tantos outros do nosso Alentejo, só muda o sabor do meu chá sob o minarete. Tenho a praia a dois minutos, os suficientes para encontrar o rapaz das framboesas e o seu bonjour madame e depois vem o Said e o seu chá mas não te tenho a ti. Há calor, calor, muito calor como aí no Alentejo. As tradições, os cheiros e os sabores daqui são outros mas, meu amor, o Sol tórrido que se estende no horizonte para ir morrer escondido atrás da serra ou do monte ou do mar é o mesmo. E quando me aventuro nas areias do deserto, ainda mais a Sul, a tristeza escorre-me pela chávena de chá de menta porque, meu amor, estou cansada de desencontrar-me contigo. Tu que andas sem mim pelo nosso Sul enquanto eu vou viajando por aí, dando quedas por dentro, mesmo sabendo que o Alentejo me cai tão bem. E tu tinhas razão quando me dizias para procurar a paz do Sul. Sim, meu amor, o Alentejo cai bem às pessoas.
Já não sei se olhe para trás e enfrente, de babuchas nos pés, esta areia quente do deserto e aqueles dias em que o mundo para nós parou; ou se olhe para a frente e imagine os novos rituais que criaremos, meu amor, e que irei registar a marcador encarnado para que não se apaguem com esta aragem que me chega do mar. Quero que saibas isto: a Ovibeja espatifa-me os nervos, meu amor. E não entendo como é que as pessoas não se cansam de repetir sempre os mesmos tempos e lugares. Eu preciso de mudança, meu amor. Mas aqui neste país onde me encontro, fui assaltada pela nostalgia de um outro Sul, do nosso sul. E de repente, a minha força foi levada pelo vento. Porque estou convencida, meu amor, que um encontro como o nosso foi escrito a luz solar no tecto desta galáxia em que habitamos. Sei, meu amor, que os anos-luz que nos separam são aparentes.
Acordaremos juntos um dia destes, meu amor, e partiremos de mãos dadas, rumo ao nosso Sul? Já não sei mas ficarei à espera viajando. Até lá, meu amor, irei coleccionando indícios da tua ausência em todas as etapas desta vida vivida e viajada, ora em círculos ora em tangentes, mas sempre na esperança de que a intersecção venha a caminho. Porque, meu amor, entre nós não houve – não haverá nunca – um protocolo de despedida. Não, meu amor, não arrumámos definitivamente a hipótese de sermos felizes a Sul.
Sinto saudades de ti, meu amor. Creio mesmo ter reparado em ti por seres um homem feliz e por saberes, como eu, que estamos sós e de passagem. E não consigo, por mais que tente, justificar a minha imprudência naquela quase última tarde em que, desprevenida, não percebi que só o Amor nos bastava.
Ainda vamos a tempo, meu amor? Se quiseres, irei contigo à Ovibeja.