Falamos de mérito ou de privilégio?

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no mundo dos outros

Lisa Ferro

Lisa Ferro||Expoente M Rádio

Mérito. Atributo que torna uma pessoa digna de apreço. Aptidão, capacidade. Superioridade, excelência. Valor moral e intelectual.

Meritocracia. Sistema social que tem por base uma forma de liderança assente no mérito pessoal em detrimento da riqueza ou do estatuto.

E também: Argumento rançoso. Ruído de fundo. Pastilha elástica. Arma de arremesso por excelência no combate à inclusão.

No dia em que o I Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação é colocado em discussão pública enxota-se o pó dos estandartes. Sacodem-se os naperons. Rangem os baús bafientos. Ouve-se o pigarrear dos fantasmas de outrora. É ao termo removido o mofo e o caruncho. A dormente meritocracia retorna ao léxico da opinião pública para fazer eclodir, sem metamorfose, o eco do debate que antecedeu a aprovação da Lei da Paridade.

Se, em 2006, se empinava direito às mulheres, tal cão raivoso a fazer frente a uma representação menos desequilibrada entre géneros na formação de listas candidatas a eleições, hoje alça-se com escudo a jovens provenientes de territórios económica e socialmente desfavorecidos para urrar contra a implementação de um regime de quotas no acesso ao ensino superior. É que os números apontam para que as comunidades de muitos destes territórios sejam, frequentemente, provenientes de minorias étnicas e raciais e tenham, também frequentemente, a pele mais escura que a minha.

Com um olho fechado e o outro semicerrado, enfiado num funil, a classe que eleva a bandeira da meritocracia parece tão coxa quanto míope. Fala de mérito sem reconhecer o privilégio. Arremata o favorecimento mas ignora a desvantagem. Contesta a discriminação positiva mas não considera a assimetria. Como se qualquer ponto de chegada não dependesse inevitavelmente do ponto de partida. Como se, em Portugal, a desigualdade quanto à distribuição de rendimentos não estivesse, em 2019, fixada acima dos 30%. Como se esse fosso não se tivesse acentuado drasticamente com a pandemia. Como se mais de um milhão de pessoas que trabalha não vivesse, neste país, em situação de pobreza. Como se esse valor não ascendesse a quase metade da população antes da transferência de qualquer prestação social. E como se não fosse ainda superior a 16% mesmo após esse pagamento. A classe defensora da meritocracia crê-se, portanto, capaz de subir o Evereste de pantufas, munida de um lenço de assoar, de um elástico e de um fósforo.

No ano em que me matriculei num mestrado recebi a única bolsa de mérito académico disponível na instituição que frequentei. A meritocracia rendeu-me um cheque que me permitiu continuar a estudar. Sem desfazer do meu próprio esforço, é inegável a influência de um conjunto de circunstâncias que me conduziram ao estatuto de pessoa de mérito.

Porque estava empregada e auferia um ordenado acima da média, tive rendimentos suficientes para pagar propinas, livros, material escolar e deslocações de e para a universidade. Porque trabalhava apenas 35 horas semanais tive disponibilidade mental para estudar. Porque a minha entidade empregadora cumpria o Código do Trabalho tive direito a despensa para frequentar aulas, fazer exames e apresentar trabalhos. Porque não sou mãe pude direccionar para a formação toda a minha energia.

Teria eu mérito se, em vez do jantar, o meu companheiro me fizesse exigências? Teria eu mérito se, em vez de conforto, existisse na minha casa violência? Teria eu mérito se, em vez de estrutura familiar, tivesse fome? Teria eu mérito se, em vez de uma moradia, habitasse uma tenda? Teria eu mérito se, em vez de tranquilidade, vivesse em tumulto?

Tratou-se exclusivamente de mérito ou inegavelmente também de privilégio? Vamos, então, continuar a falar de meritocracia ou já podemos começar a falar de igualdade de oportunidades?

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