Um vestido de seda azul…

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A Louca da Casa

Carmo Miranda Machado

Carmo Machado Miranda||Expoente M Rádio

     À medida que os dias me escapam e os anos me fogem, começo a fazer contas. E de cabeça, para treinar a mente e tentar escapar ao Alzheimer. Mas os cálculos não me ajudam e constato que, a seguir a tradição dos genes familiares, numa década, o mais tardar em duas, estarei destinada ao lar de idosos e, na melhor das hipóteses, à compaixão de uma sobrinha ou outra que se lembre de me ir visitar.

     Ora, voltando aos cálculos, fiz contas e mais contas, e cheguei à conclusão de que, quando envelhecer no Alentejo profundo, sem deixar no planeta quaisquer descendências diretas, terei,  quanto muito, cinco  alternativas para acabar os meus  dias até morrer. Então, veja lá, querido leitor, se concorda comigo:

(i) Ficarei, graças a Deus, na minha alegre casinha – se o tino ainda o permitir – onde viverei uma santa vidinha embora a reforma seja parca;

(ii) Ficarei na minha casinha – ainda santa – e no conforto dos meus próprios lençóis sem logotipo de instituição, onde serei  visitada por um apoio domiciliário que algumas associações de solidariedade social fornecem e que nos limpam a casa e nos deixam a comida pré-aquecida num recipiente de plástico;

(iii) Serei depositada num dos Lares da Segurança Social – porque entretanto terei estafado o dinheiro todo a viajar pelo mundo – onde permanecerei horas a fio sentada numa cadeira sem braços, numa sala apinhada de gente triste, com uma televisão a gritar a tarde inteira;

(iv) Irei para uma casa de repouso – porque deixei de viajar e consegui assim poupar algum dinheiro ao longo da vida –  onde, em princípio, me sentarão num cadeirão de napa castanha com braços e onde serei cuidada e tratada à medida dos mil e tais euros que pagarei por mês isto, claro está, na condição de as tais sobrinhas andarem sempre lá de volta para ver se me cortaram as unhas e me trocaram a fralda);

(v) Ou então, last but not the least, depositar-me-ão (as tais sobrinhas) nessa mesma casa de repouso onde, acamada e sem qualquer tino – mas com uma imaginação delirante – me julgarei no melhor quarto do melhor hotel das Caraíbas, em frente ao mar.

     Ora, vem esta crónica a propósito de um facto: a minha mãe sofria de Alzheimer e, necessitando de cuidados permanentes e específicos, foi também ela depositada numa casa de repouso, tendo em conta que nenhum dos filhos podia deixar de trabalhar para cuidar dela. Eu visitava esta casa de repouso amiúde e, de início, o nome – Quinta do Charro – provocou ardentes voos na minha imaginação. Sonhei que ao cair da noite, distribuíam bolinhos de haxixe acompanhados por um saboroso chá de erva-cidreira e que todos os idosos daquela casa dormiam o sono dos justos, adormecendo sorridentes. Mas a realidade era outra e muito diferente. Não era fácil adormecer e os sorrisos eram escassos nos rostos que se sentavam naquela sala de convívio onde, para meu pesar, a televisão também gritava sem cessar.

     Numa dessas visitas a esta casa de repouso – localizada em Beja – e farta de ouvir os gritos das apresentadoras dos programas de TV, imaginei ali uma pequena biblioteca ou, pelo menos, um local onde revistas coloridas tirassem da letargia aqueles seres. Deste modo, decidi selecionar levar uma quantidade de revistas, desde a Mais Alentejo a outras como Maria Claires, Máximas, Vidas Activas, Voltas ao Mundo, Burdas etc. etc. etc., que espalhei orgulhosamente pelas mesas e cadeiras. No fim-de-semana seguinte, deparei-me, feliz, com várias senhoras e senhores a folhear as páginas das revistas; uns mais alheados do que outros mas todos com alguma curiosidade e com o ar de quem redescobre o sabor das coisas belas que a velhice e a reclusão forçada de uma casa de repouso lhes retirara. A minha mãe, que, sempre gostou de moda e desenhava os seus, os meus e os nossos próprios vestidos, surpreendeu-me com um momento de lucidez, raro no seu quotidiano de demência, que me marcou para sempre.

     Uma tarde, em que me despedia dela para regressar a casa, disse-me com os olhos a brilhar: Filha, vi numa dessas revistas um vestido que quero fazer. Compra-me, se fazes favor, dois metros de seda azul, linhas do mesmo tom e uma tesoura que corte bem… 

     E dizendo isto, remeteu-se à sua gruta no fundo do mar das suas memórias.

     Deixei a quinta do charro já era noite. Entrei no comboio da CP em direção a Lisboa com muitas lágrimas nos olhos. Mas, desta vez, eram lágrimas diferentes. Lágrimas por alguém que percebe o valor que um simples vestido azul pode ter na vida de uma mulher.

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