A Louca da Casa
Carmo Miranda Machado
Hoje questiono-me de mansinho sobre o destino que escolherei quando puder voltar a viajar. E talvez deixe Beja para revisitar Brooklyn, talvez dois dos locais da minha vida.
Andei por Nova Iorque como quem deambula por uma cidade plana do nosso Alentejo, só que em vez de olhar para o longe, no horizonte, olhava simplesmente para cima. Lá, onde os prédios arranham os céus, não consegui desligar-me do Alentejo. Explicando-vos melhor esta minha viagem – realizada antes desta pandemia nos afetar a todos – passei a noite de Natal na minha pitoresca aldeia de Vale de Vargo, onde não faltou um presépio em tamanho natural, um lume no adro da igreja que ameaçava chegar aos céus, uma missa da meia-noite com um padre enfadonho – como quase todos os padres que eu conheço – a que se seguiu um desfile de pais natais à meia-noite em cima das suas Kavasakis. E, bem cedo, no dia de Natal, apanhei o avião para Nova Iorque onde vi o ano, a vida e o mundo passarem.
Nova Iorque apenas, não. Brooklyn. O espaço encontrado para ficar era um apartamento em Williamsburg com vista para Manhattan, arrendado através do Airbnb. Até aqui tudo bem. Paragem em Londres para mudar de companhia aérea, da British Airways para a American Airlines e só depois aterraria no aeroporto JFK em pleno dia de Natal. Acordado estava com a dona da casa, de partida para o seu país natal, o México, de quem me desencontrei por umas horas, que a chave se encontraria debaixo do tapete da porta do apartamento. E assim foi. Lá estava a chave. Uma chave… Porém, não era a chave do apartamento. Na pressa da partida para o aeroporto, a chave fora trocada.
Foi assim que me encontrei, acabadinha de chegar de Beja a Nova Iorque, na noite do dia de Natal, com uma mala e uma porta fechada, ambas fechadas, à minha frente. A aventura tinha começado. Impossível contactar a dona do apartamento que se encontrava a voar para Acapulco. Sem qualquer desespero instalado, decidi bater às portas dos outros apartamentos do mesmo andar. Nada. Ninguém. A noite caía e eu não tinha onde dormir. Comecei a sentir uma leve angústia instalar-se no peito, uma pequena melancolia a alastrar-se por dentro, uma pequena saudade da pasmaceira da minha aldeia alentejana.
Eis que se ouve o elevador subir e uma jovem dos seus quarenta anos, moderna e bonita, alta e loura, sai. O apartamento dela era mesmo ao lado do meu. Olhou-me, estava eu sentada no tapete à entrada da porta… Falámos. Contei-lhe a minha desventura. Ela tinha deixado a família com quem passara a noite de Natal e regressava ao seu espetacular apartamento em Williamsburg com vista para o céu de Manhattan. Para minha surpresa, convidou-me a entrar e a pernoitar com ela. Abriu de imediato uma garrafa de vinho tinto e eis que, de repente, me vi num apartamento em Nova Iorque com a Jamie, Sales Manager de uma conhecida marca de roupa trendy, a beber vinho tinto e a conversar…
Não sei se foi do choque da mudança de coordenadas, se do inusitado acolhimento de que fui alvo, a verdade é que me senti em casa. Na verdade, as diferenças linguísticas, culturais, sociológicas, geográficas e arquitetónicas – tão drásticas entre Beja e Brooklyn – não foram suficientes para apagar o essencial: éramos apenas duas mulheres divorciadas, aventureiras, fartas do Natal e dos rituais que ele acarreta, a precisar do conforto das palavras e do vinho…
E naqueles dias, enquanto percorria as ruas de Nova Iorque de cabeça erguida aos céus, senti-me em casa. Só quando regressei ao Alentejo percebi o que tinha acontecido: a Jamie recebeu-me como se ela própria fosse alentejana, duma pequena aldeia do Alentejo profundo da margem esquerda do Guadiana que, em Nova Iorque, agira como se desde sempre estivesse habituada a abrir a porta aos vizinhos.