carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Desde há alguns anos que não guardo memória alguma sobre o que acontece quando durmo. Sei que sonho, mas não recordo absolutamente nada.
A única excepção acontece nos momentos em que, entre um mundo e o outro, tenho perfeita noção de que é um sonho, mas também sei que não posso intervir no decorrer dos acontecimentos, sob risco de deitar o sono a perder. O importante a reter é este limbo: o momento em que percebo que estou a perder o controlo dos pensamentos.
Há uns dias, num desses momentos de limbo o mote para o “ralenti cerebral” foi (vá-se lá saber porquê!) “números de telefone”. A dada altura, o lado consciente do cérebro sobressaltou-se: não sei número de telefone nenhum de cor. Refreei o susto, com medo de perder o sono, mas guardei esse facto, praticamente trágico, para remoer mais tarde.
E é o que me proponho a fazer nas próximas linhas.
Tenho informação perfeitamente inútil a que consigo aceder com a maior das facilidades: os números de telefone da casa onde cresci e da casa da minha avó, por exemplo. Dos mais recentes, o único que sei era da minha mãe, que entretanto trocou de rede e não tendo conseguido que lhe migrassem o número, trocou de dígitos. Da constatação anterior, migrei eu para outras paragens: a quantidade astronómica de coisas perfeitamente inúteis que guardo como se de relíquias se tratassem e a incapacidade de registar outros factos mais importantes.
Tenho frescas quase todas as letras dos Onda Choc, dos Ministars e até do Jardim Jaleco. Ora se assumirmos que a demência não demorará a instalar-se, é com facilidade que prevejo tardes animadas no lar de idosos rolando a cadeira pelos corredores fora entoando os versos: “tenho cara de boneca, mas que seca, podem crer”.
Tirando os textos que decorei por razões profissionais, e que desapareciam sem deixar rasto assim que deixava de os estudar, nunca consegui decorar poemas. Não trago no bolso citações de filósofos ou escritores, nem mesmo dos que li. O mais longe que vou são os primeiros versos d’Os Lusíadas e isto devido a um trauma profissional que poderá vir a ser tema para outro texto.
Às vezes, em discussões, surge-me uma vaga ideia de uma frase que assentava ali bem… Naquele momento, se eu pudesse sacar do Tolstoi ou do Eça era certo e sabido que saia por cima e ganhava a contenda. No entanto, e o que se segue é facto comprovado, se num jantar a coisa está animada, o fado do “Jacaré Casca Grossa” está todo na ponta da língua! E para quê, pergunto?! Porque raio sei o número de casa da Patrícia Pezo e não consigo decorar o nome do filme que vi a semana passada e que era tão bom?
E mais uma vez a teoria comprova-se: há pelo menos um verso do Jorge Palma adequado a cada momento da vida e o que figura ali no topo da página em ares de título, é o ideal para o que sinto. E não imaginam o trabalhão que foi para encontrá-la porque eu tinha uma vaga ideia do conteúdo, da ideia, mas não das palavras ou da melodia e foi preciso quase uma semana para chegar lá!
*excerto da letra de “A Escola” de Jorge Palma