Da marquise à purga

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Sónia Calvário

Há 5 anos, a Cercibeja e a Delegação de Beja da Cruz Vermelha organizaram os Mastros Solidários, um dos eventos que me fez acreditar que a estratégia, iniciada em 2013, dava já frutos e a coesão social seria possível. Os Santos Populares festejados na Praça da República foram um sucesso. O convívio, entre pessoas, que a vida, apesar do meio pequeno, não havia cruzado, ou que as próprias jamais pensaram em aproximar, pelos mais variados motivos, incluindo as posições e meios sociais em que se moviam, era ilustrador do espírito e sentido de comunidade que se estava a construir.

O Centro Histórico era, então, o palco principal, onde as iniciativas culturais e artísticas promoviam o concelho, estimulavam a economia local e onde quase tudo acontecia. E é também aqui que, nos últimos dois ou três anos, se notam mudanças significativas, entre elas, a multiculturalidade que se vai vivenciado por todo o mundo ocidental e que chegou a Portugal, e a Beja, para ficar.

A pandemia tem evidenciado várias fragilidades do Estado português e a exploração a que estão sujeitos os imigrantes a trabalhar e a residir no distrito de Beja foi mais uma delas. A constatação das condições de vida e habitacionais a que estão sujeitos levou a uma crescente indignação dos portugueses, nomeadamente após o polémico realojamento de muitos desses imigrantes do concelho de Odemira para o Parque Zmar.

A compaixão é inimiga do ódio. Pelo que o estímulo do medo, na maioria das vezes com recurso à mentira e/ou ao exagero, é a melhor arma para promover o preconceito, a intolerância e a violência.

Em Beja, o mês iniciou com a disseminação, através do Facebook, de relatos de perseguições a raparigas e jovens mulheres, por indivíduos do sexo masculino, da comunidade imigrante. Não colocando em causa a veracidade de algumas situações, as que me chegaram, contudo, concretizam o comportamento “criminoso” no facto daqueles homens estarem a “olhar” para as “vítimas”. Foram vários os episódios, com este teor, que foram surgindo na rede social e, nos últimos dias, um conjunto pessoas, essencialmente composto por mães e pais de crianças e adolescentes, tem vindo a manifestar-se e a pugnar pela segurança na cidade, apontando a comunidade imigrante como a responsável pelo medo sentido.

Sem grande esforço consigo recordar-me de situações em que fui alvo de olhares, comentários e outros comportamentos indesejados. Procurava não me colocar em risco, contava com os pares e com a comunidade. Sabia que existiam pessoas más e mal-intencionadas. Que eram uma exceção. Podiam ser homens, mulheres, mais novos, mais velhos, brancos, negros, portugueses ou estrangeiros, de qualquer profissão ou posição socioeconómica… Como hoje.

Na semana passada aquando das notícias da detenção de dois homens por suspeitas da prática de crimes de pedofilia e do presidente da Cercibeja, indiciado por crimes sexuais contra uma utente da instituição, muitos dos que agora se indignam e se organizam mantiveram-se recolhidos, observando, da sua marquise, o que se passava, remetidos ao silêncio ou, e bem, relegando para as autoridades competentes o apuramento e avaliação dos factos.

O espírito de comunidade e de coesão é um trabalho contínuo e transversal. A sua interrupção tem consequências e retrocessos a vários níveis. E é com imensa preocupação que o constato e que vejo, em Beja, na terra onde tenho as minhas raízes, cresci, optei por exercer a minha profissão e constituir família, se avança perigosamente para uma purga. Onde aumenta o preconceito, a discriminação, o ódio. Agora contra uma comunidade que foge da miséria, como nós fizemos no passado, necessária, que, com o seu trabalho – e, diga‑se, exploração, contribui para a economia local, para que possamos adquirir, a preços baixos, os produtos que tanto gostamos de degustar, mas também para a sustentabilidade do país, nomeadamente da Segurança Social, que contou, em 2019, com um encaixe financeiro de 884 milhões de euros… e, amanhã, sabe-se lá contra quem e com que fundamentos…

Não embarquemos em discursos fáceis, populistas e não nos deixemos manipular. O Rigor, a lucidez e a coerência serão importantes aliados para a construção de uma sociedade justa e segura, que, estou certa, todos desejamos.

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