Marias
Leopoldina Pina de Almeida
Esta publicação poderia começar por… Numa pacata cidade alentejana… Isto, na altura em que eu pensava que o EntreMarias de junho seria sobre sugestões de brincadeiras ao ar livre para as férias d@s mais pequen@s. Para desconfinar, para confiar, para sair para a rua. Mas, isso foi antes. Há poucos dias, mas muito antes… Entretanto, o nevoeiro que cobria a cidade começou a dissipar-se. Leve, não incomodava nada a respiração e apresentava-se sob uma aparência singularmente opaca. Aliás, aquele nevoeiro tinha um cheiro doce a damasco tuberculoso e devia matar os odores pessoais (Boris Vian, O Amor é Cego).
Ao contrário do final deste conto, em que a vida pôde continuar a ser feliz visto que todos tinham rebentado os olhos, nesta cidade o espaço vazio deixado pelo nevoeiro começou a ser ocupado pelo Medo. Um Medo que entrou pelos olhos expostos durante longas horas a ecrãs e se foi espalhando por todo o corpo. O Medo alojava-se principalmente nos corpos das mulheres e das raparigas, quando entravam em contacto visual com desconhecidos do género masculino, de aparência diferente dos seus pais, amigos ou irmãos e que falavam de modo estranho. Mas este Medo tomou outras formas. Mais redondas e delicadas. As próprias raparigas e mulheres possuídas pelo Medo passaram a transportá-lo nos seus corpos e apesar de tentarem a todo o custo esconde-lo, ele teimava em sair-lhes de forma explicita pelas saias justas, decotes generosos e maquilhagens sugestivas. Era como se o medo se tivesse voltado ao contrário. Como um vírus, tinha-se metamorfoseado, estava em transição. E foi assim que alguns homens também começaram a sentir o Medo. E @s idos@s, @s professor@s, famílias inteiras. Até as crianças.
E aqui estamos. Em Beja. Beja a tremer. Quase a desmoronar-se. De Medo. A exorcizar os seus demónios, que estavam escondidos por entre o nevoeiro. Na minha opinião, a maior parte das pessoas que contribuíram para estes movimentos do Medo em Beja, subvalorizaram o impacte que iriam ter. Mas isto é a rede, senhoras e senhores. As redes têm fios, está tudo ligado. É só começar a desenrolar…. Perde-se o fio à meada. Falou-se na segurança. Seria mesmo essa a principal questão? O nevoeiro dissipou-se rapidamente e começamos a ver cada vez melhor. Muit@s atribuíram a culpa (o que quer que isso seja) aos outros, aos migrantes, aos mais diferentes, aos já tão fragilizados. Até para esconder o medo que temos de nós e dos nossos. Sem nos questionarmos porque é que essa população estrangeira e pobre está aqui no Alentejo. Será para violar as mulheres e as raparigas, ou simplesmente para sobreviver, para fazer um trabalho mal pago, que enriquece tão pouc@s e sempre @s mesm@s?
Muitas imagens e emoções me vieram à cabeça nestes últimos dias. Acontecimentos que se tinham passado na minha adolescência e que eu pensava ter já apagado da memória. Basta começar a puxar o fio à meada…. Sei que com outras mulheres se passou o mesmo. Estamos a precisar de falar. Cara a cara, olhos nos olhos. Todas crescemos a perceber o poder e o efeito do corpo feminino no outro, no confronto com o outro. Corpo-manifesto-corpo-desejo-corpo-sujo-corpo-bandeira-corpo-mascarado-corpo-idolatrado-corpo-grito-corpo-silêncio-corpo-virgem-corpo-usado-corpo-utilizado-corpo-descartado-corpo-abusado. Corpo. Só. Todas nós temos estórias para ouvir e para contar. Mas para isso, é importante haver espaços e tempos de convergência, onde nos sintamos seguras para falar dos nossos medos, para que a sua visibilidade os faça diminuir quando os encaramos de frente e não barricadas atrás de um ecrã, distribuindo gostos, escárnio e maldizer de formas muitas vezes inconscientes e indiscriminadas, sentindo-nos falsamente protegidas.
Ultrapassar o medo é investigar, conhecer, nomear, descobrir as suas origens. Penso que não é o medo que devemos temer. O medo é uma estratégia saudável para lidar com o perigo. É nosso aliado. Devemos acolhê-lo e respeitá-lo. Mas estou bastante consciente do aproveitamento que estes medos têm e dos interesses de quem os promove meticulosamente, de forma a poder controlar massas de gente medrosa à espera de um qualquer salvador que as venha libertar do mal e dos demónios que (não) são os outros. E não tenho dúvidas que é a criação de comunidades reais e com sentido de pertença que nos pode ajudar a ultrapassar em conjunto os nossos medos. Outras redes. Redes para além de sociais. Redes solidárias com pessoas reais.