Vovó Chipangara está zangada
Neusa Pedro
Se tiverem uns amigos como os meus, certamente já devem ter ouvido, vezes sem conta, a piada sobre o ditado que diz «quem planta tâmaras não colhe tâmaras». Pois a mim aconteceu-me plantar mangueira e não colher manga.
Tinha cerca de 6 anos, tínhamos acabado de nos mudar para o bairro tsalala e das melhores coisas de lá é que toda gente tinha machamba1 em casa. Plantava-se batata doce, mandioca, semeavam-se abóboras, milho e etc. Mas, era nas árvores que morava a essência do aglomerado.
Lembro-me de, nos primeiros meses do início das obras lá de casa, cortarem um canhoeiro2 gigante que separava o nosso quintal do quintal da tia «Maria» para que as raízes não estragassem a fundação da casa. O nosso quintal ficou nu, o que me deixou extremamente triste. Não que gostasse de canhu (criança não bebe canhu) mas porque o tombo do canhoeiro foi muito doloroso, parecia abate de imbondeiro3, e as matomanas4 que caíram da árvore e fugiam em direção à porta de casa eram feias e asquerosas.
Os cajueiros5 eram poucos na zona, as papaieiras6 também, e maracujá poucos se atreviam a plantar, mas as mangueiras… essas eram de todas as cores, tamanhos e sabores, de uma a outra ponta do quarteirão. A manga rosa era cobiçada, a xinhembane7 era excessivamente vigiada pelos donos, a manga maçã era também raridade na zona e as outras tantas bem que podiam tentar ser especiais mas o facto de brotarem em qualquer lugar, até nos quintais mais pobres de terra, não ajudava.
Lembro-me perfeitamente do dia em que um amigo nos ofereceu um pé de mangueira para plantarmos no nosso quintal. Por essa altura a mamã já tinha a sua machamba consolidada. A folha de mandioca brotava verde e brilhante, a folha de feijão nhemba8 fazia a melhor nhangana9 da zona e a batata-doce amarelada por dentro e vermelho terra por fora dava uns bons matabichos10 de chá five roses (chá da África do Sul mais consumido em Moçambique).
Plantamos a mangueira juntas. Fiquei muito feliz, eu queria muito uma mangueira lá em casa. O máximo que tínhamos tido noutras casas onde moramos foi uma mafurreira11 e uma papaieira. Eu gostava destas duas mas a verdade é que nenhuma substituía o ritual sagrado de comer manga.
Em casa tínhamos roupa selecionada de propósito para comer manga. As nódoas, ainda que causadas pelo doce e maravilhoso sabor das mangas, eram imperdoáveis no uniforme da escola ou na roupa de ir pr’ a cidade. Do ritual também faziam parte as zangas porque alguém sempre ficava com a melhor parte nos dias que era para dividir ou, quando muitas, lutávamos pelas mais bonitas, para não falar das constantes dores de barriga que aborreciam as pessoas mais gulosas.
Eu estimava muito a minha mangueira. Regava quase todos os dias depois da escola. Depois de mamã viajar para Portugal, continuei a regar mesmo assim. A mangueira crescia bem, até porque não deixava ninguém arrancar folhas ou tentar subir de brincadeira e partir os ramos ainda fracos.
Passado uns tempos, metemos um pé de cana-de-açúcar, uma anoneira e uma maçaniqueira na machamba. A maçaniqueira12 cresceu e tornou-se uma praga difícil de controlar, e tinha muitos picos, o que tirava toda vontade de comer maçanica. A cana-de-açúcar nunca passou do pé como já era de prever naquela zona pouco húmida, a anoneira tinha sempre uma larva verde que se divertia com as folhas e não as deixava crescer.
Cerca de um ano antes de vir para Portugal, a minha mangueira já albergava as nossas melhores sestas, brincávamos de trançar boneca de capim13 debaixo dela e das poucas vezes que fazia tpc, fazia ali mesmo. Naquele ano, brotaram umas flores na mangueira e pensamos que dali a uns meses teríamos as primeiras mangas daquele pé. Mas a época das mangas chegou e nem uma manguinha, para fazer piri-piri, saiu.
Algumas pessoas disseram que talvez a árvore fosse estéril, que não ia dar mangas nunca na sua vida e, ainda que em casa chegassem imensas mangas de diferentes vizinhos, custava-me que a minha mangueira não tivesse dado mangas desde o dia que a plantei com mamã.
Cerca de um ano depois cheguei a Portugal e, embora tenha deixado a árvore com umas flores a brotar, acreditei que seria como no outro ano, que não ia dar nem mangas nem manguinhas.
Meses depois, entre novembro e dezembro (altura em que as mangas começam a amadurecer), numa das poucas chamadas que fizemos com a família, naquele ano, alguém do outro lado do telefone e do mediterrâneo disse: “mana neu, tudo bem? quando é que vais vir nos visitar? estamos a comer mangas da tua mangueira”.
À semelhança da piada das tâmaras, a minha história não tem nada de altruísta e diferente de mim: o velho sábio plantava tâmaras sabendo que não as ia comer.
Eu plantei mangueira e não colhi manga por puro azar, não porque aos 6 anos entendesse de altruísmo e generosidade transgeracional. O motivo era o de, pura e simplesmente, comer mangas diretamente do pé da minha mangueira.
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Adorei o texto e fez-me viajar no tempo da minha infância em que brigava com os macacos e esquilos que me atormentava no campo de amendoim….a nossa infância é a nossa história escrita no cérebro
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A Neusa irá deliciar-nos certamente com algumas😉 É seguir! Bom fim-de-semana.
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