A Dona Umbelina

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A Louca da Casa

         Carmo Miranda Machado

            Se fosse viva, a dona Umbelina faria hoje, dia 16 de Julho, 91 anos. Partiu no início deste ano, vítima de Covid-19. Apetece-me falar-vos dela…

          Parecia uma mulher fria. Alta, magra e sempre direita, mostrava-se distante. Perdeu uma irmã mais nova, que morreu de um dia para o outro. A mãe – a senhora Antonica – nunca mais tirou o luto e proibiu a música, a rádio, a televisão e o riso… como se rir fosse um pecado. A filha mais nova da dona Antonica entrou no hospital de Beja com uma dor no joelho e morreu dois dias depois. Ficou a crença de que lhe tinham feito mal. Bruxarias, invejas… Dizem que era muito bonita, a Maria Dilar.

          Umbelina cresceu e seguiu o seu destino. Já mulher, casou-se com o senhor António, homem simpático, pacato e bonacheirão. Tiveram um filho que morreu com um ano de idade. Umbelina decidiu que não teriam mais filhos. Mas tiveram… outro rapaz. Ela como que ficou contrariada. Queria uma menina a quem pudesse dar o nome de Maria Dilar. O Senhor António pedia-lhe, amiúde, um beijo. Deixa-te disso, parvalhão. Ai se é badelo… Mas depois, dava-lhe um beijo. Setenta anos de vida em conjunto. Havia muito amor naqueles setenta anos. Umbelina não era mulher de afetos. Brindava várias vezes o marido, pedinchão de um beijo aqui e outro ali, com o estribilho repetido amiúde: Deixa-me da mão, pareces uma carraça… O mesmo estribilho dirigido, anos mais à tarde, à neta, pouco antes de morrer. Era refilona e discutia amiúde com o filho. Apesar do marido, obediente, lhe chamar minha pombinha, o seu feitio tramado intrometia-se em tudo. Mas a nora, em quarenta anos de convivência, nunca discutiu com ela, mesmo quando ouvia: Ah, atão agora vai de calças de ganga para a escola? Ah, tire-me isso dos olhos, que coisa tão feia.

          O seu grande sonho era morrer à sua vontade. Na sua aldeia. Na sua casa. Na sua cama. De preferência ao lado do seu António. Não queria que lhe falassem de lares. E ambicionava ter muita gente no velório, primeiro, no enterro depois. E que houvesse muitas, muitas  flores sobre o caixão. Só não queria ser cremada. Quis o destino – ou a pandemia – que morresse na sua casa, na sua cama onde dormira durante mais de cinquenta anos. Mas não teve velório. Por isso, não queria morrer durante a pandemia.

          Partiu sem ser velada pelas mulheres da sua aldeia mas levou a roupa por ela escolhida ao pormenor. À mortalha, juntara um sabonete para a lavarem e um pequeno frasco de cheiro. Queria partir perfumada. A neta mais nova, teimosa como ela, não lhe fez a vontade. Morreu em plena pandemia sem mais perfume do que o das muitas rosas que a acompanharam.

          Conservadora como são as mulheres no Alentejo profundo, cumpria com rigor os seus rituais. Ia por vezes à missa mas não sei se sabia rezar. Sei que preparou a sua morte ao pormenor. O local da campa. A pedra. A fotografia. A mortalha. Discutia mesmo com o marido, o senhor António, quando este era ainda vivo,  sobre quem ficaria por cima… Junto à mortalha, havia três rosários. Vocês depois escolhem um pra eu levar… Deixou escolhida também a funerária. Reservada. Nunca se dava mal com ninguém. Era muito amiga da casa. Muito crítica. Quando as pessoas não punham luto era uma ofensa irreparável. Ai se ela soubesse…

          Quando eu morrer, procurem pela casa toda que ainda há muito dinheiro. E havia. Dentro dos bolsos dos casacos, nas canecas, no fundo das gavetas, por detrás dos santinhos. E em talegos e latas espalhados pela casa, as netas encontraram novelos de notas, enroladinhos e atados com um fio. E repetia: Procurem bem

          Que descanse em paz, dona Umbelina!

 

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