Vovó Chipangara está zangada
Neusa Pedro
Há muita gente confortável em celebrar uma imagem vazia e uma memória barata de Nelson Mandela, apagando o seu caráter revolucionário, resistente aos ideais colonialistas e comprometido com o antirracismo. Compreendo que seja um bom mecanismo para quem busca sentir-se confortável com um ativismo igualmente vazio e barato vendido por 2 tostões nas redes sociais e uma forma de não se comprometer muito com o que ainda ficou por fazer.
No passado dia 18 de julho comemorou-se o 103º aniversário do nascimento de Nelson Mandela, ninguém poderia prever que, nessa mesma semana, teria lido aquele que foi o pior livro da minha vida, que, em conjunto com as frases prontas e descontextualizadas que imperaram nas redes sociais, é igualmente necessário para esta reflexão.
O livro intitula-se “O Marxismo em África: Moçambique e a África do Sul – A Verdade”, escrito por Mário Cajada[1] em 1989, primeiramente editado em 1990. Comecei a lê-lo por acaso, com a ideia de que seria mais uma tarde a ler um pequeno livro que não iria alterar muito a desordem natural das coisas dos últimos tempos, mas, rapidamente, transformou-se numa leitura áspera e revoltante.
São 64 páginas de pura tolice e falta de noção do próprio contexto em que este não se inseriu, inserindo-se. Para além de um paleio incansável sobre os benefícios do capitalismo e colonialismo para um Moçambique recém-libertado e tão malgovernado por homens e mulheres que lutaram pela sua independência, M. Cajada, manifesta, no quarto capítulo sobre a África do Sul, uma falta de noção e empatia digna de um colono.
Nos primeiros parágrafos do capítulo lê-se: “O sistema estabelece que, quem quiser progredir e viver melhor, tem de trabalhar por isso. Quem o não fizer, sofre as consequências, seja branco preto ou amarelo”, seguindo-se de: “África do sul, de uma maneira geral, grande maioria da população e os próprios governantes também estão seriamente empenhados na sua abolição (apartheid). Só que a complexa estrutura deste país não torna fácil tal objetivo.”; “quando ouvimos acusações de que a África do Sul só os brancos possuem alto nível de vida, enquanto os negros se arrastam miseravelmente, não podemos evitar um frémito de revolta por tanta má-fé e ignorância.” E para fechar: “…, a verdade é que foram os colonos brancos, pela sua ação e maneira de viver, quem arrancou as populações negras de uma existência selvagem, a única em África, (…).”
Ora, o livro é escrito em 1989. Neste altura, vigorava o apartheid na África do Sul há mais de 40 anos. Mandela encontrava-se ainda preso na ilha de Robben. Em 1960, M. Cajada já tinha assistido ao massacre de Sharpeville e, em 1976, ao massacre no Soweto, onde cerca de 600 jovens e crianças estudantes foram assassinados pela polícia sul-africana. No ano seguinte, em 1977, Steve Biko era brutalmente assassinado às mãos da polícia sul-africana e os negros sul-africanos, nesta altura, suportavam mais encargos fiscais do que o resto da população, pagando mais impostos. Todos estes acontecimentos parecem ser irrelevantes para as análises de M. Cajada que manifesta, além de uma desonestidade bruta, uma falta de tato e sensibilidade para com o povo negro sul africano.
A ausência de reflexão nas redes sociais, nas escolas ou noutros lugares de socialização sobre a segregação étnica e racial que imperou e impera atualmente não só na África do Sul, mas um pouco por todo mundo, é um desserviço à memória de Nelson Mandela. Existem hoje pessoas que, tal como Mário Cajada, embora sem qualquer benefício colonialista e/ou capitalista, não acreditam que tivesse havido uma determinação racista por trás das imposições segregacionistas do governo sul-africano daquela época, pessoas estas alienadas da realidade que condenou e continua a condenar económica, política, cultural e socialmente as pessoas racializadas.
Assumir um compromisso com o legado de Mandela é ir além das celebrações vazias de conteúdo, é abraçar um compromisso com o antirracismo, fazer da sua história e memória um espaço para libertar pessoas racializadas, é saber reconhecer os mecanismos segregacionistas da época e a sua continuação nos dias de hoje, é podermos falar sobre racismo e combate-lo sem medo e é nunca nos demitirmos da responsabilidade de lutar contra o apagamento constante e insistente da sua memória antirracista.
[2] “Mário Cajada é um branco de África, embora nascido em Portugal, nos arredores de Tomar, há setenta anos. Fez-se colono mal lhe despontava a barba e desde logo se fixou no interior do concelho de Magude, ao sul do Save, em breve se entusiasmando pela criação organizada de gado bovino. Nisso terá seguido certamente as pisadas à altura periclitantes de seu irmão Augusto, que lhe mandara a “carta de chamada”, como talvez desse velho rijo e retorcido que dava pelo nome de Santos da Motaze e a quem os indígenas batizaram de Tshila wa guluve, ou seja “rabo de porco” (casado com uma negra, a D. Margarida, que lhe deu três filhos mulatos, lutadores como poucos). ”. (prefácio de Ricardo Saavedra),
A personalidade e o exemplo de Mandela não são descritíveis em meras palavras, e a sua memória perdurará muito para além da notável capacidade de esquecimento de quem o não quer lembrar.
No entanto, como muito bem diz, existe uma grande “ausência de reflexão nas redes sociais, nas escolas ou noutros lugares de socialização sobre a segregação étnica e racial”.
Para preencher, com um grão de areia, essa lacuna, escrevi sobre a situação do racismo em Portugal numa reflexão algo extensa que procurei que fosse desapaixonada e objetiva.
Se tiver uns minutos a perder, convido a uma visita a https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/06/racismo-o-homem-cor-de-rosa_26.html e, caso algum interesse encontre no texto, a um comentário e à respetiva divulgação.
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