carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Infelizmente a minha vida e da dona M. cruzaram-se há cerca de dois anos e têm seguido quase sempre paralelas, mas com algumas intersecções.
Uma porta e um pátio que são comuns e que dona M. reclama como seus, são os pontos de ignição para comportamentos desajustados, conversas bizarras, gritos, furtos e outras acções para as quais a explicação não é simples.
Dona M. já passa dos oitenta anos e não emite uma única vibração de avó, que é o que eu espero de alguém com esta idade. É alta demais para uma alentejana típica, forte sem ser gorda, faz adivinhar que ainda guarda bastante força física, o que não me deixa nada descansada. Os cabelos são já esparsos e dona M. “penteia-os” de forma a tapar as zonas mais despovoadas da cabeça. A coloração foge de um amarelo desmaiado para um cinzento mal amanhado, que torna impossível uma definição concreta. Tem o hábito de se esconder atrás de vigas, roupa estendida e plantas para observar, mas arrasta os pés, o que acaba sempre por denunciar a sua presença, anulando assim a brincadeira de espiões que ela faz sozinha.
Ser-me-ia impossível contar de uma assentada e com o pormenor devido, o que nestes dois anos já vivi, aprendi e observei. Partindo do mesmo material, podia escrever os argumentos de dois grandes blockbusters: um deles, uma comédia clássica, exploraria o efeito cómico de uma relação complicada entre duas vizinhas e a sua constante luta por território; o outro seria um thriller psicológico recheado de suspense, no qual se contariam o desespero de uma jovem, que tendo ido viver para a sua casa de sonho, se vê confrontada com as sucessivas investidas da sua vizinha psicopata e serial killer. Neste momento, penso que a versão mais justa seria a última. Agora que penso nisto, talvez só me tenha lembrado de escrever este testemunho para que as autoridades tenham algum tipo de pista que os leve até à responsável pelo meu súbito desaparecimento e aos meus restos mortais.
Tenho noção de que esta introdução vai longa e ocupou já grande parte do espaço disponível, mas era impossível fazer o relato sem o contextualizar e eu sempre tive dificuldade em resumir. Por esta razão, este será o primeiro capítulo da saga e esta é a justificação para o “I” no título, que como toda a gente sabe é um “1” em numeração romana, porque a numeração romana dá sempre bom aspecto e garante a qualidade de um romance.
Como amuse-bouche (podia ter escrito aperitivo, mas isto faria com que a pessoa imaginasse uma talhada de melão e uma fatia de presunto e eu queria fazer-vos pensar tostinhas elegantes com molhos de cores apelativas), deixo o relato, resumido do que aconteceu.
A meio da manhã de domingo, dormia eu no sofá, quando um estrondo me fez estremecer: algo ou alguém tinha caído das escadas que levam à minha porta. As escadas são de ferro pelo que fazem muito barulho quando algo ou alguém se esbardalha por ali abaixo.
Levantei-me de um salto, dirigi-me à porta e a partir daqui a coisa é um pouco confusa: eu estava ensonada, estávamos já perto dos quarenta graus, o sol batia de chapa e pareceu-me tudo tão absurdo e surreal que não consegui ir tendo uma noção real do que estava a acontecer.
Abri a porta e a primeira coisa que vi foi uma das cadeiras de verga (bem pesadas, por sinal) no fundo das escadas. Não podia ter sido o gato. Olho para o lado e vejo dona M. firmemente agarrada à mesa que faz pendant com as cadeiras, fazendo adivinhar que nos próximos segundos esta se juntaria à desgraçada cadeira. Neste momento tive de me vir calçar que o chão queimava. Mas eu, que não me deixo ficar, comecei logo a dizer coisas. As que me pareciam mais acertadas e contundentes: “o que é que está a fazer?” “porque é que está aqui?” “pouse já isso” “ mas que raio!” e outras ideias articuladas como estas. A dada altura ela responde: “estou a fazer o que me mandaram”. E é certo que demorei a absorver a informação, mas repliquei com “quem é que mandou?” ao que ela respondeu “o dono das cadeiras.” E aqui já não respondi, porque me falhou aquele espírito assertivo de saber o que dizer a cada momento.
A coisa terminou com ela a descer as escadas ao ritmo dos meus gritos enquanto eu tentava levar a cadeira para cima (na verdade acho que adaptei os gritos à pouca mobilidade e arrastar de pés da dona M.) e ela termina com “ele não lhe vendeu a casa, ele deu-lhe um papel falso!” Foi a última coisa que ouvi. Vim para dentro.
Para terminar e a bem da transparência quero só deixar registado que tenho a factura das cadeiras e a escritura da casa.
(continua…)
* letra da música “Jeremias, o Fora-Lei” de Jorge Palma