II – Vou Falar-vos de Um Curioso Personagem*

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carrossel dos esquisitos

Ana Ademar

Breve Resumo do Capítulo Anterior: domingo de manhã, D. M, a materialização dos pesadelos em forma de gente, vandaliza o mobiliário de jardim de uma jovem. Poderão a frágil saúde mental da jovem, a sua mobília e o próprio mundo sobreviver a D. M?

 

O domingo de manhã tornou-se motivo de angústia e ansiedade desde que D. M. tomou conta da minha vida. É neste dia que ela age. A razão não é clara, poderá ser porque encontra inspiração no serviço religioso a que assiste pela fresca? Sentir-se-á ela limpa da mancha do pecado e por isso livre para mais um acto perverso pelo qual pedirá perdão na próxima homilia?

O certo é que, sábado à noite, adormeço a imaginar a patifaria do dia seguinte, procurando não ser surpreendida.

Há domingos em que nada sucede, mas, meus caros, não sejam ingénuos como eu fui. O facto de pausar o plano maléfico para me destruir a vida apenas demonstra organização, método e estratégia.

Umas semanas antes do episódio do mobiliário de jardim (e quando falo em jardim, refiro-me ao metro de pátio que tenho em frente à porta), detectei uma tentativa de furto. Uma das minhas botijas de gás estava estacionada à porta de D. M com um saco de papel enfiado na “cabeça” (a botija, não a D. M. Nunca me referiria à cabeça de D. M usando aspas). Olhei, matutei e várias questões surgiram: porquê colocar um saco? Para disfarçar a botija? Para que eu não a reconhecesse por ter as feições do “rosto” cobertas? Não encontrando respostas válidas, limitei-me a colocar a botija no sítio.

Na quarta-feira que se seguiu ao episódio da cadeira-escada-abaixo encomendei uma botija de gás e foi quando descobri a nova investida da velha: tinha roubado a botija que anteriormente disfarçara com o saco de papel e desta vez não havia rasto. Não sabendo quando o acto foi perpetrado, sem provas ou testemunhas reduzi a minha acção ao possível: lamentar e ferver por dentro, consumir-me no sentimento de injustiça e viver com as consequências da minha negligência por não contar todos os dias os objectos que me pertencem e se encontram no espaço comum que partilho com D M.

No domingo seguinte, por volta das 11 da manhã oiço ruídos no pátio. Apuro o ouvido: um som metal soava, mas não vinha dos degraus da escada por onde rebolou a cadeira, era um metal específico. Era o metal de uma botija de gás. Abro a porta e espreito: D. M carregava uma das botijas para dentro do covil. Segue curvada, mãos nas pegas, levanta a botija, arrasta cada pé duas vezes, pousa a botija, Inspira e repete: mãos nas pegas, eleva a botija, arrasta cada pé duas vezes, pousa a botija. E lá de cima, eloquente como só eu: “oh que caraças! O que é que está a fazer agora? Volte lá a meter isso no sítio.” D. M, visivelmente surpreendida, pousa a botija, endireita-se pouco a pouco quanto pode, conseguindo criar vários segundos de tensão: o que poderá argumentar agora? As vozes que ouve ordenaram-lhe que levasse mais uma botija para casa? Senti-me a tremer de expectativa. D.M levanta a cara na minha direcção e com o ar mais ingénuo e surpreendido do mundo: “Ah, mas é sua?! Também usa deste gás? Pensei que fosse minha, está no meu lado do pátio”.

E aqui está! Com esta singela frase, D. M denunciou-se. A suposta nuvem de loucura que eu adivinhava na minha vizinha, que me fazia refrear reacções e até me provocava compaixão, dissipou-se. E porquê? Porque numa das “conversas” com ela, tentando fazer-lhe ver que a porta e o pátio eram das duas e que o facto de ela ter os seus pertences espalhados por todo o lado não lhe dava direito de fazer seu todo o espaço, acabei por dizer: “Esse lado do pátio é seu, este é meu!” Ora eu, que já se sabe, não sou grande estratega, não tive em conta que o lado do pátio que lhe atribui era onde estava o armário onde se encontram as botijas de gás. Portanto, segundo a análise de D.M à minha divisão, ela tem direito ao meu armário do gás e a todo o seu conteúdo. Enquanto eu, pela divisão feita, passo a ser a orgulhosa proprietária de vários vasos partidos, plantas podres, flores de plástico, pilhas de jornais, centenas de folhetos de hipermercados, gavetas desconchavadas e várias dezenas de garrafões de plástico.

E estamos nisto.

A minha ideia para o texto de hoje era contar sobre a vez em que a D.M me entrou pela casa adentro usando uma chave roubada. Mas acontece tanta coisa no nº 2 da minha rua, que é difícil de acompanhar. Quando houver novidades regressarei, mas até lá deixo um abraço solidário a quem tem vizinhos que roubam, ouvem vozes, destroem coisas e que, quando confrontados, fingem demência.

* letra da música “Jeremias, o Fora-Lei” de Jorge Palma

 

I – “Vou falar-vos de um curioso personagem”*

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