A Viagem de Maria

Maria Campaniça

Celina Nobre

Maria teve durante toda a vida um amor único. A paixão assolapada dos tempos do Liceu, haveria de acompanhá-la até quase aos 50 anos. Durou muito mais dum quarto de século, entre o tempo de namoro e de casamento – quase uma vida – resultando daí os seus 3 rebentos: o Francisco, terapeuta da fala, com quase 40 anos e que reside, com a companheira, longe. O António que, mais novo e mais perto, também já tem sua vida e aprecia a sua autonomia e independência, pelo que as visitas à casa materna também já vão rareando. Ludovica é a mais nova da família. Uma jovem de 20 anos que frequenta agora a Universidade, em Lisboa, e que vai também, aos poucos, escasseando as visitas semanais à mãe, à medida que vai descobrindo as delícias da capital e percebendo que na cidade há até alternativas aos tupperwares, guarnecidas pela mãe, cheias de sabores do campo.

Desde que há vários anos, quando Fernando partiu, aos quase 60 anos, decidindo escolher outro lar e uma nova família, que Maria não baixa os braços, como uma mulher coragem. Entre o emprego, a casa e a família que nunca deixou desmoronar, vai fazendo o seu caminho. Muitas vezes tortuoso, solitário e difícil, como o regresso que agora iniciou, ao volante do seu velho companheiro de andanças. Juvenal pareceu-lhe logo, à primeira vista, uma boa pessoa. Simples, puro e honesto. E aos 60 anos já não se procura uma pessoa para impressionar. Quem se quer é alguém para partilhar. Pensava, por vezes, com os seus botões, nos poucos momentos disponíveis em que ainda se sentia mulher, apesar de cada vez menos pensar em sexo.

A decisão de ir ou ficar não se afigurou fácil, logo no primeiro encontro. Pensava na educação que teve e imediatamente vieram-lhe à cabeça os conselhos da mãe.

– As mulheres ficam sempre. Ou, se assim não for, são as últimas a abalar, para poderem fechar a porta. Dizia-lhe a mãe, enquanto Maria, ainda adolescente, ficava com a cabeleira farta, cheia de tranças vistosas, aninhada no colo da mãe. Era com esse ar de moçoila, mas provocatório, que entrava na mercearia vizinha e que, quase todos os dias, recebia doces oferecidos pelo rapazito que por lá vendia haveres a avulso. Para Maria essas doces oferendas, à socapa do patrão, simbolizavam a doçura da vida e o seu poder para a desfrutar. E parece que foi há tão pouco tempo! Mas o tempo é estranho e, a                        partir da meia-idade, ganha velocidade e já não há quem o apanhe.

As mães ensinam o que aprenderam, mas a vida também, sobretudo quando a abertura de espírito permite ler o real, à luz de novas variáveis e há uma idade em que também até já se leem os sinais. Basta, para isso, estar atenta.

A saída abrupta e inusitada de Juvenal para responder ao capricho do patrão, noite dentro, não lhe pareceu nem um bom começo, nem um bom prenúncio.

 Ante a dúvida instalada, Maria optou por se montar no seu carro tão velho como a estrada, que não conhecia. As luzes indicavam-lhe o caminho, apesar da condução nunca ter sido o seu forte. Serpenteando a estrada de terra batida confiava que a lua se encarregasse de lhe facilitar o caminho. Pelo menos até um lugar, mais confortável para a sua consciência. Por entre as sombras escuras das árvores projectadas, na estrada esburacada, travava e acelerava, como desta aparente antítese resultasse a chegada segura a um qualquer sítio, com menos fantasmas, menos dúvidas e mais liberdade.

Juvenal, sem saber o que pensar, da decisão de Maria, oscilava entre a culpa pelo desencontro e o alívio e com os seus botões desabafava:

– Se te foste embora é porque o destino assim o quis. Como tu, devem haver muitas por aí. Perdeu-se a queca, ganhei o céu! Afinal, não longe da horta cercada, há a casa da luz vermelha, onde, com regularidade afoga as mágoas e o ganso.

Já quase a chegar a casa Maria recebe um telefonema.

–  Maria preciso de ti.

A chamada cai.

Ao entrar em casa põe o telefone a carregar, ansiosa por perceber quem a chamava.

Quando consegue introduzir o pin constata que o número era não identificado.

Nesse instante é surpreendida por Fernando que, volta não volta, regressa a casa à procura de alguma coisa. Desta vez era da caixa das ferramentas.

– Há sempre maneiras de enganar o coração – pensa Maria – enquanto indica ao ex-marido a direcção da garagem. Há coisas que, por mais voltas que a vida dê, nunca mudam de lugar.

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