carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Aviso já que isto não vai ter piada nenhuma. Não sei se é do peso do inverno, se da certeza das mudanças todas que pressinto, da visão clara que novas estradas se abrem e que as velhas estão obstruídas com um monte de calhaus gigantescos, como se tivesse havido uma derrocada… Mas penso que talvez seja isto tudo que me tem mantido concentrada em coisas sérias, ainda que me vá divertindo, senão andava a bater com a cabeça nas paredes – este mundo não é para brincalhões.
Hesitei muito sobre o que escreveria este mês, que é o primeiro do ano, que é aquele que começamos com mais esperança, e aquele em que, depois da euforia das festas, mais nos decepcionamos quando percebemos que afinal, tirando a ressaca do dia 1, continua tudo na mesma.
A frase que dá título a estas linhas ouvi-a do Hugo Van Der Ding, num dos podcasts (maravilhosos!) que faz para a Antena 3. Achei a frase tão actual que fui ver quem era este Karl Kraus e descubro que morreu em 1936! A Wikipédia, esse repositório de todo o conhecimento do mundo, diz: “Crítico da moral burguesa de sua época, Kraus defendeu as prostitutas, os homossexuais e condenou o feminismo” mas bom, nem todos podemos ser perfeitos. Certo é que a dita frase é de uma actualidade assinalável. Talvez isso não seja mérito do Kraus, mas do pouco desenvolvimento humano; talvez isso não seja culpa nossa; talvez não haja mesmo espaço para desenvolver mais; talvez esta facilidade em ser manipulado seja própria da raça e algo que talvez possamos contornar, embora não erradicar. Talvez, talvez, talvez… Não sei, a filosofia sempre me confundiu.
Penso que a maioria de nós tenha achado que o que aconteceu na Praça da República, de Beja, na passagem do ano, não fosse mais que um episódio isolado, resultado de profissionais demasiado zelosos e com gosto em usar as ferramentas da sua função, mas só algumas, no caso, o cassetete ou bastão, parece que é assim que se diz agora. Mas, tendo em conta os relatos de situações semelhantes, parece-me que ou temos mão nisto rapidamente ou arriscamo-nos a levar na boca por dá cá aquela palha. O que me lembra leituras que fiz sobre tempos de má memória, em que “manter a ordem” era essencial e os direitos humanos não eram mais que uma coisa meio abstracta, de que alguns já tinham ouvido falar.
Tendo em conta os testemunhos, ficamos a saber que não foi uma situação isolada. Não quero sequer acreditar que esta triste cena aconteceu porque os agentes pensaram que as pessoas presentes na praça eram todas imigrantes e que, portanto, não haveria consequências. Tal como não as houve em março de 2020, quando carregaram sobre um grupo que usava a rede de internet gratuita na Casa da Cultura para, talvez, informar a família de que estavam vivos e sem Covid. Começo a pensar que quando a Câmara Municipal desligou o wifi, no início de 2021, estava afinal a proteger os imigrantes de levarem com cassetetes ou bastões, ou lá o que é, e não a serem apenas maus e cruéis, como me pareceu na altura – e me continuará a parecer se a hipótese aventada não colher.
Algumas questões que me assaltam e que talvez me apeteça partilhar: quantas vezes mais isto terá acontecido sem que ninguém tenha testemunhado? Quantas situações semelhantes terão os confinamentos ajudado a camuflar? Para quando formação cívica e humanista dentro das forças de segurança? Para quando um verdadeiro rastreio aos racistas, cruéis e desumanos seres que, sabemos agora, vestem farda?
Para que não haja más interpretações (e céus, haverão sempre, mas who cares?!), quero deixar claro que este não é um texto de generalizações, nem de ataque às forças de segurança. Pelo contrário, se algo me leva a escrever isto é a certeza de que é preciso garantir que as forças de segurança desempenhem as suas funções de forma exemplar e que não defendam elementos que envergonhem a entidade que é suposto representarem, nem os cidadãos que é suposto defenderem.
Quando falamos de imigrantes, falamos de gente assustada, porque desenraizada, a viver em condições miseráveis que, apesar de públicas, nada se faz para resolvê-las. Uma vez que a flagrante falta de condições de higiene e segurança não faz agir as entidades competentes, sugiro então que optemos por atacar onde dói: averiguar se, das centenas de Euros, quando não milhares, que recebem mensalmente, os senhorios ou donos dos albergues ou legítimos proprietários, ou lá como se pode chamar a essa gente, pagam os impostos a que são obrigados. Isto, claro, partindo do pressuposto optimista de que foi emitido o licenciamento desses espaços para o fim a que estão a ser usados. Talvez assim, se consiga “chegar às pessoas” ou melhor dizendo, aos “empreendedores” cá do burgo que usam e abusam destes pobres sem eira nem beira e ainda assim dormem a noite inteira e de seguida como anjinhos.
Por mim acho que, talvez haja quem mereça ser varrido à bastonada ou aterrorizado por um grupo de malfeitores (nessa noite foi o que foram), ainda que fardados, mas não, certamente a comunidade migrante, que apenas quer ser feliz fazendo os trabalhos que nós enjeitamos. Bom, mas isto sou a dizer, mas só porque gosto de dizer coisas…