Os bons, os maus e os invisíveis

Maria Campaniça

Celina Nobre

O mundo, no seu devir, está cada vez mais a preto e branco. Dependendo do alinhamento dado aos assuntos, pelos media, assim desencadeamos emoções de associação ou de repúdio pelo que de mais trágico nos entra em casa, em particular pelos diferentes canais televisivos. A insistência nas peças, muitas repetidas até à exaustão, ao longo dos dias, trivializa o que nunca poderá ser aceitável. Para humanos completos. Valas comuns, restos, do que já foi gente, espalhados pelo chão, gente sem chão, que procura num comboio um meio para sair do caos, olhos fundos, já sem luz d’alma humana, pelo que já viu, ouviu e sentiu, ansiosa por chegar a sítios que não conhece como porto de acolhimento. A repetição acalenta, todavia, a aceitação. Normaliza aquilo que nunca poderá ser normal. A guerra, qualquer guerra, é um exercício da mais profunda desumanidade, mata civis, mata militares, destrói infraestruturas, separa filhos de pais, sujeita sobreviventes a memórias traumáticas e mata a esperança. Como se num qualquer dia de abertura de caça se matassem todas as pombas brancas. E estas caídas no chão servissem apenas como alimento aos abutres, que há muito as esperavam mortas. Caídas. Já sem simbolismo. Apenas carne morta, inerte, mas que alimenta.

Dir-me-ão: guerras sempre houve. Até as que não passam na televisão. Matam. Negam também elas a essência da humanidade. No Iémen, na Arábia Saudita, no Mali, na Síria, em Israel, na Palestina e em Moçambique e as que na Europa aconteceram, já no nosso século, quando ainda conseguíamos fingir que o perto era longe. Quando o mundo era ainda, aparentemente, mais colorido e o longe ainda determinava a distância. Talvez apenas na nossa percepção. Ainda assim ditava-a.

Numa sociedade claramente alienada e frágil, onde a dimensão económica dita as leis do sentir, de forma egoísta e egocêntrica, o mais fácil é agir em função das emoções. Como se pensar e encontrar princípios para perceber o mundo, que nos rodeia, fosse excluir a possibilidade de sentir o que de trágico acontece à nossa volta. A verdade é que só podemos incluir quando pensamos e pensar pressupõe distanciarmo-nos do que nos chega servido em baixela selecionada. Pressupõe buscar as raízes. E essas estão debaixo da terra muito longe do mediatismo que desencadeia emoções, que nos faz chorar pelo que vemos, mas que nos impede de pensar acerca do que existe, talvez porque seja mais fácil chorar pelo que nos mostram que pensar sobre o que não vemos.

Do amor já quase tudo se disse. Da morte também.  Ambas inspiraram poetas. Na antítese da existência. Já a guerra é menos poética. Quase que me resta ir ouvindo o tic-tac do meu coração, cheio de paz e, no compasso ritmado dessa existência, para ir encontrando as veredas que conduzem ao caminho.

Perante o dualismo do mundo: entre os bons e os maus, há também os invisíveis. Estes últimos serão sempre os que morrem, os que sofrem, os que ficam sem chão.

Num plano utópico, que todos passem rasteiras à guerra, ouvindo “Imagine” do John Lennon, regando, com sorrisos, os canteiros da vida e fazendo germinar a paz que há em nós, obrigando a definhar os venenos que crescem e se propagam, movidos por entes loucos, mas que se movimentam bem no showbiz, fazendo desencadear emoções e indignações.

Se assim não for, confirma-se a dualidade entre os bons e os maus, sendo que os invisíveis assim continuarão: mortos. Silenciosos. Vítimas dum dualismo que existe apenas para arrumar a história, mas cujas prateleiras ainda terão que inventar.  E onde os invisíveis não cabem. Ou têm uma etiqueta branca. Dispensando a razão e os princípios.

Como se fosse possível equacionar o mundo e a história apenas sentindo. Como se a realidade existente fosse apenas o que nos entra em casa, seleccionada por directores de programas, pagos, a peso de ouro, pelos nossos impostos.

Os bons, os maus e os invisíveis somos todos nós. Basta que não nos construam, à pressa, a gaveta do sentir e que sejamos capazes de não abdicar de pensar, para além da sociedade espectáculo. Sendo pessoas. Todos os dias das nossas vidas. Com princípios.

De preferência sem caixinhas. Feitas à medida duma realidade que outros inventaram.

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