“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana | Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia”*

carrossel dos esquisitos

Ana Ademar

É muito raro conseguir concordar na totalidade com qualquer ideia, mesmo que seja minha. Se organizo uma opinião, logo de seguida invento três ou quatro “mas” que, se não a invalidam, pelo menos colocam-na em causa. Depois fico confusa e abandono o pensamento. Não me impede de ir aventando opiniões e juízos, mas mantenho-me sempre aberta à possibilidade de estar completamente errada. E confesso: fragiliza-me o ego perceber que não tenho ideias muitos fixas sobre quase nada e quando as tenho, calha às vezes, estar enganada. Fragiliza-me porque percebo que à minha volta não há quem não tenha certezas. Absolutas. E às vezes, porque também consigo colocar três ou quatro “mas” nas ideias dos outros, aborrece-me falar com eles, porque se recusam a entreter a ideia de que podem estar errados, recusam adoptar para eles a confusão mental em que mergulho e continuam fixos na sua ideia original.

Viver com dúvidas não é cómodo, parece-me bem mais suave navegar pela vida com ideias fixas, com certezas, mas não disponho desse luxo e a maior parte das vezes, lamento. Lamento quando é necessário decidir coisas e os “mas” me assolam e não me tornam a vida mais fácil.

Sempre me senti assim e vivi na certeza de que quando fosse crescida isto passava: afinal os adultos pareciam todos muito certos do que faziam. E continuei à espera. Agora já sou crescida, mas as certezas não me chegaram. Não tão absolutas como as que vejo nos outros.

Não estou completamente iludida, quanto mais adultos conheço, mais me convenço de que, salvo raras excepções, ninguém sabe muito bem o que anda a fazer. Convencem-se de que sim, vestem a casaca das certezas e passeiam-se pelas praças, ruas e esplanadas desta vida, mas desconfio que anda tudo tão baralhado, tão confuso e tão incerto quanto eu.

Alguém me terá vendido a ideia de que por esta altura já era suposto saber o que ando por aqui a fazer, o que quero ou para onde vou, mas não tenho Papa que me aponte o caminho e bom, se o tivesse, rapidamente o despedia, porque eu não gosto que mandem em mim. Mas reconheço a vantagem de ter quem nos diga o que fazer, quando e o que dizer a propósito de todos os assuntos.

Os confinamentos, porque nos deram tempo, deixaram muita coisa destapada. É que por norma não temos tempo para ponderar as coisas. Os dias passam rápido e as decisões às vezes nem são decisões, são só uma forma de andar para frente. Com o tempo que tivemos para fazer pão ou plantar flores ou qualquer outra actividade que não nos passaria pela cabeça duas semanas antes, o cobertor da falta de tempo, que no fundo nos aconchega, desapareceu e deixou as incertezas, os medos e erros de fora, à vista. Quando o mundo parou, quase toda a gente teve tempo para se colocar em causa e quem não o fez, perdeu uma boa oportunidade.

Certo é que uma parte dos adultos que vejo cheios de certezas, na verdade adoptaram-nas de outros que parecem ainda mais certos das suas certezas. E é assim que matam dois coelhos de uma cajadada só: passam a ter certezas e fazem parte de um clube. Ficam aconchegados num círculo de gente com as mesmas certezas e com tanta ou mais certeza que eles.

E eu, que tirando três ou quatro, não tenho certezas quase nenhumas, fico indecisa entre ter pena da incapacidade de viver na incerteza e inveja daquela confiança cega nas certezas dos outros, como se discordar fosse ilegítimo, como se tomar para si as opiniões alheias os tornasse leais ou daí lhes viesse alguma coisa. E talvez venha, a paz de espírito de pertencer a algum lado, de fazer parte de qualquer coisa e afinal, não estar sozinho neste mundo.

As certezas que tenho são muito poucas. Uma delas é a de que não há flor mais bonita que os cravos vermelhos, porque a beleza não vem só do que se vê. E para sorte minha, parece que as sementes que plantei no confinamento estão agora a despontar. Com sorte terei cravos vermelhos nos meus vasos. Não chegam a tempo de Abril, mas quem sou eu para julgar os atrasos dos cravos, quando eu tenho dificuldade em chegar a horas a qualquer lado?

Ser adulto não é fácil e eu estou a aprender a conformar-me com o facto de que não sei “adultar” muito bem. Pelo menos segundo os padrões dos que conheço. E ainda que me continue a causar angústia, cada vez mais estou em paz com a certeza de que nunca terei muitas certezas. Acontece que aqueles que as têm, cada vez me parecem mais frágeis e menos interessantes para partilhar uma mesa com petiscos e um bom tinto. E bom, disto tenho a certeza: é das coisas mais importantes da vida.

*versos do “Poema em Linha Recta” de Álvaro de Campos

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