Maria Campaniça
Celina Nobre
Na minha escola primária, lá para os lados da “Conceição” no concelho de Ourique, onde fiz o exame da quarta classe no século passado, havia meninos de batas brancas e botas novas e outros de batas coçadas e botas gastas. Na sala de aula, os lugares não eram distribuídos pelo grau de educação ou inteligência, os meninos eram arrumados pela cor das batas e o estado das botas. Na primeira fila junto à professora, para não perderem nada da catequese, ficavam as batas mais brancas, mesmo que não soubessem atar os cordões das botas, o importante era elas serem novas. Competiam entre eles para serem os primeiros a levantar o dedinho e dar a resposta, mesmo que saísse uma tremenda asneira. O importante era mostrar interesse à Senhora Professora.
Às vezes, os meninos do fundo da sala com as botas rotas, riam-se das asneiradas proferidas pelas batas brancas para serem de seguida severamente repreendidos pela professora: – É que não estavam atentos, falavam muito uns com os outros, chegavam sempre atrasados por terem vindo de longe, nunca limpavam a lama das botas, ou só por terem uma nódoa antiga na bata velha.
Era no recreio no pátio que o inverno transformava num lameiro onde brincávamos, que falávamos livremente das nossas vidas, partilhávamos descobertas e ensaiávamos os primeiros palavrões. No quintal da escola, voltávamos a ser todos iguais, apenas crianças. Depois tocava a sineta e regressava cada um ao lugar que lhe estava destinado. São memórias da minha escola primária do século passado.
Agora já mais crescida, fui recentemente ao teatro. A peça chamava-se: “A Bailarina Cor de Rosa”. O desenrolar da trama, o desempenho dos actores e as cenas desusadas, fizeram-me regressar ao passado. Durante a peça cada actor ocupava o seu lugar representado o papel que lhe tinha sido pedido. A peça procurava ilustrar como cada um deve comportar-se no lugar que a organização social lhe reserva, uns eram os jactantes, a outros cabia o papel de adulador dos jactantes presentes, putativo candidato ao lugar, depois os reverenciais, são os mais penteados, tem os olhos em bico e aplaudem entusiasticamente jactantes e aduladores, por fim temos os vassourões, muito úteis na organização, preenchem os espaços vazios no palco, ajudam nos aplausos e enceram os soalhos, são também conhecidos por aspirantes.
Foi quando a peça acabou que espectadores e actores se misturaram na coxia em direcção à saída, que as portas se abriram como no recreio da escola. Entre pensamentos difusos, atrapalhados por leves encostos de gente que não conhecia, mas que insistia em sair primeiro, que recordei Max Weber, que entendia que a sociedade é de facto, um teatro social, é composta por actores sociais que exercem papéis sociais, conferindo aos mesmos um status social, também os teatros são edifícios que ao longo da história têm sofrido inúmeras alterações, ao nível da estrutura física, desde os teatros a céu aberto próprios das culturas clássicas, até aos teatros fechados, onde se privilegia o conforto dos espectadores, mas onde ainda se diferenciam os espaços. É nos camarotes que as pérolas fazem brilhar o cetim, algures acima da plateia. Na coxia, espaço em torno do placo, mas não visível ao público também acolhe personagens, acontecimentos. Tanto que se passa nos bastidores. Que tristeza, ainda existirem lugares diferenciados, que bom que passei no exame da quarta e que não fui bailarina.