carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Entre um Carrossel e o outro, vou anotando temas sobre os quais falar no próximo. Acontece que o faço quase exclusivamente, de forma mental, ou seja, quando chega a hora de escrever, não tenho a mínima ideia sobre o tema a abordar. Sei, no entanto, que, naquelas semanas tive ideias maravilhosas, mas fatalmente perdidas na confusão em que o meu cérebro vive. Um dia, terei um cérebro não só arrumado e organizado, mas também funcional (grandes esperanças!), por isso tenho estratégias: escrevo post its de cores diferentes, onde cada cor corresponde a um assunto. Mas depois acontecem-me desgraças: tenho uma ideia fantástica relativa ao assunto dos post its verdes, mas só encontro os amarelos e pronto! Basta isto para se dar a derrocada de todo um sistema até ali infalível.
Tudo isto para dizer que as próximas linhas podiam, sem dúvida, ser sobre um tema elevado e de grande importância para o desenvolvimento humano, onde eu podia levantar questões profundas e dar-lhes até respostas possíveis. Infelizmente, nas linhas que se seguem o que há, não são conquilhas, mas mistérios mais humildes, talvez até pouco interessantes para a humanidade, mas de vital importância para mim, que ainda vou prezando a pouca sanidade mental que me resta.
No pátio que partilho com a D. M há um ninho de andorinhas. Tirando a caca que se acumula debaixo do mesmo (e a quantidade não deixa de ser surpreendente tendo em conta o tamanho dos bichos), não há outras contra indicações. É muito mais agradável vê-las em voo picado, do que ficar só a olhar para as de porcelana que tenho cravadas nas paredes e que embora bonitas e com a vantagem que aqui ficarem o ano todo, não emitem o piu-piu imprescindível de um dia de Primavera.
Já se sabe que a Primavera renova a natureza ou porque a natureza se renova, dá-se a Primavera, o que tirando a dose de anti-histamínicos necessária para lhe sobreviver, é um período de grande contentamento para mim, ainda que a crescente imprevisibilidade meteorológica me deixe, por vezes, incrédula: quem é que pensando em Beja, pensaria em mini-tornaditos?, mas sempre foi um acontecimento e mote de conversas e posts vários. Regressemos ao que importa: é Primavera, logo os bichos reproduzem-se, incluindo, claro está, as andorinhas.
Há cerca de três semanas, numa das paredes do pátio, que são brancas (ou já foram) “um ponto preto quebrou-me a solidão do olhar”**: à primeira vista tratava-se de um amontoado de pêlo ou de penas. Era definitivamente qualquer coisa que já teria tido vida, preso por um cordel que, por sua vez, estava pendurado no manípulo de um dos contadores da luz.
As sensações dos primeiros momentos foram estranhíssimas, se houvesse banda sonora na vida, era daqueles momentos de tensão acrescida, pensemos, por exemplo, no “Tubarão”: tun-tun-tun… Aproximei-me, mantendo uma distância de segurança – tun-tun-tun… – eu esperava que a qualquer momento aquele amontoado de pilosidade ou penas se mexesse na minha direcção. Tun-tun-tun-tun... Antecipando que, a acontecer ficaria gaga para sempre, não me restava alternativa senão aproximar-me muito lentamente – tun-tun-tun – e ao contrário do que esperava, “aquilo” não se mexia. Mais um passo. E outro – tun-tun-tun. Foi preciso estar a menos de um metro daquele rolo de coisa que eu sabia ter estado nalguma altura viva, para perceber o que era – TUN-TUN! – dois cadáveres de andorinha com as patas enroladas em cordel.
A primeira coisa que fiz foi certificar-me de que aquele não era o meu contador da luz. Depois, em turbilhão, as ideias: porque raio aquilo ali estaria? Como raio teriam morrido as andorinhas? Mas essencialmente a pergunta que se impunha era: Porquê?! Porquê, senhores?! Porque raio tenho eu esta sina com vizinhos? Porque raio morreram as andorinhas? Porque raio alguém ata patas de andorinha morta a um cordel e as deixa penduradas num contador da luz como se fosse um enchido no fumeiro?
Assumi, consciente de que era a ideia menos má no meio disto tudo, que as bichas teriam caído do ninho e se não faleceram da queda, o gato do vizinho tratou de pôr fim ao assunto. O resto? Não faço ideia. Será, para sempre, um mistério.
No dia da recolha do lixo comum, limitei-me, depois de um longo período de preparação mental, a usar um dos paus que D.M guarda no pátio (e sim, desta vez o transtorno de acumulação até se revelou útil) e enganchá-lo no cordel e pousar os restos mortais das desgraçadas no saco preto.
Era isto. Tenho fotos. E tenho medo que alguém as encontre no meu telefone e pense que ando a fazer macumbas, mas preciso de provas, porque senão seria outro caso como o das Lesmas na Casa de Banho, sobre o qual poderei falar noutro Carrossel, mas que em resumo é o que se segue: entrei na casa de banho a meio da noite e vi a parede da banheira cheia de lesmas que estavam a sair da ventilação. Fiz xixi a correr, fechei a porta onde colei um monte de post its: “Há Lesmas”, “Cuidado com as Lesmas”, “Pai, a parede está cheia de lesmas”, “Pai, que nojo!”. No dia seguinte, estranhei que ninguém mencionasse o caso e quando o abordei, o consenso parental foi: eu estava a sonhar. Parece que quando se levantaram, os meus pais não viram lesmas nenhumas e o que é certo é que eu também nunca mais as vi. Mas eu juro que havia lesmas, não havia era telefones para a pessoa poder registar o momento e apresentar provas.
Deixemos as lesmas e voltemos às andorinhas, ou melhor, encerremos os dois assuntos que não são agradáveis, ainda que no caso das lesmas, estas estivessem vivas. Será sempre um mistério a razão pela qual D. M se deu ao trabalho de enrolar as patitas das bichas em cordel e expô-las daquela forma. E dê as voltas que der, não há qualquer justificação que alivie o nível de repugnância e de bizarria da instalação artística.
Terei então de me conformar com o facto de nunca vir a ter todas as respostas para todos os mistérios do mundo, nem para os mais simples, quanto mais pensar em respostas para mistérios como os que se seguem: como é que em 2022 há casas sem gente e gente sem casa decente ou porque raio é tão raro uma reportagem com a qualidade da que se pôde ver a semana passada na Grande Reportagem (Sic), da jornalista Miriam Alves, ou ainda qual será o truque para nos mantermos atentos à actualidade em todas as suas vertentes, com pensamento crítico quando é coisa tão trabalhosa e o mais confortável é “deitar e rolar” para citar Baden Powell e Paulo César, palavras e música imortalizadas na voz da grande Elis Regina.
*verso de “Vou deitar e Rolar (Quaquaraquaqua)”, letra de Baden Powell e música de Paulo César.
** verso, adulterado da música “125 Azul” dos Trovante, com letra de Luís Represas