Maria Campaniça
Celina Nobre
Antes, existia na minha terra o Largo dos Correios. Era o largo das coisas de toda a gente: da Igreja, do Café, da mercearia do sr. Goncalves, do Táxi e do padeiro. Havia no meio do largo um molho de laranjeiras amargas deixadas pelos árabes e bancos de jardim à volta. Era o centro da aldeia, onde todos se encontravam, todos os dias tinham que lá ir para comprar sabão, falar do tempo, ir aos correios e abastecer-se de pão.
Mas aquela praça não era a da igreja, nem a do café, nem a do sr. Goncalves e nem das laranjeiras. Era o Largo dos Correios. Era a praça da Sra. Madalena, uma mulher grande de semblante agradável e tranquilo, com uns olhos do tamanho e da cor do oceano que todos os dias nos esperava sorrindo atrás do balcão da correspondência. Era ela quem sem pressas e serena, nos ligava ao mundo,
Com quantos olhos já nos cruzámos e sentimos, logo num primeiro momento, que se assemelhavam a um lago calmo, onde nadam peixes coloridos? Nesses poderemos aventurarar-nos, sem medos, nem boias. Assim eram os da Sr.ª Madalena. E, em forma de antítese, a quem ainda não aconteceu encontrar-se com olhos fugidios, escapadiços, como sol a pôr-se na linha do horizonte? Procurá-los é mais difícil que encontrar agulha em palheiro e encontrá-los é ter a sensação de entrar num mar lodacento, imprevisível e inseguro. A qualquer momento podemos ser engolidos por um poceiro! Até ao nascer do sol.
Antes da era digital era assim. Com a pandemia o paradigma, que já havia mudado, agudizou.
Agora é através de ecrãs que nos desvendamos. Como se uma película poderosa se interpusesse entre nós e outros, mediando a relação e filtrando o papel dos olhos. Qualquer repartição pública, através dos seus zelosos colaboradores, desde as finanças, à conservatória, passando pela saúde, agarra na máquina e actualiza dados. Protege-os. Porque são poderosos e exigem Regulamento próprio. Escreve letras miudinhas que armazena como se de ouro se tratasse, ignorando – acredito – inadvertidamente que à sua frente está uma pessoa, com fragilidades, motivações e expectativas. Muitas vezes o encontro acaba quando o formulário está preenchido. Sem que o destinatário sequer tenha tempo para perceber que o atendimento começou, aconteceu e já acabou.
A máquina assim o dita. O funcionário obedece. Cegamente.
Incomoda-me a ditadura do digital. Olho sempre para as ferramentas como instrumentos capazes de potenciar a relação. Quando sinto que a substituem fico preocupada. Nem sempre a aparente modernidade é sinónimo de qualidade. Quando um Município com 2000 habitantes instala um sistema de atendimento telefónico, como se de uma multinacional se tratasse, algo de errado se passa com o seu entendimento acerca do conceito de qualidade do serviço, bem como da sua relação com o munícipe.
Uma máquina debita informação. Normalmente, fá-lo em várias línguas.
Se quiser ouvir música marque 1; se pretende contactar o departamento do “Nunca Mais” marque 2; se pretender falar com alguém de férias, marque 3; se pretende falar o departamento financeiro, deve aguardar ouvindo a cassete especialmente preparada para si; se a chamada ficar demasiado tempo em espera volte a remarcar. No caso de pretender ser atendido por um colaborador humano, marque o 9 e espere ouvindo a nossa seleção de valsas. Se ficar demasiado tempo à espera, pode sempre mandar-nos para qualquer sítio e depois pousar o auscultador.
– Obrigado pela sua chamada, continuamos ao seu dispor.
E o velhinho, residente nos confins de qualquer serra ou planície, que mal aprendeu a desenhar o nome, pensa:
– Mas para que raio quero eu o telefone se só me respondem máquinas? Eu que ainda estou na dúvida quantos aos alimentos que devo dar ao burro, agora que com os calores, já fraqueja?
É entre esta pseudomodernidade que se instala, sem qualquer moderação, nos organismos públicos e privados que volto às pessoas. E essas têm olhos e alma que transparece por essa janela tão arejada, que nenhum ecrã ou sistema de atendimento, ainda que em várias línguas, pode substituir.
Depois do trabalho, entro na taberna do Sr. Tói. Cumprimento-o. Pergunto-lhe o que me aconselha para o petisco, ao final da tarde. Ele, atento, olha-me de alto abaixo. Também nos olhos. Depois dum silêncio refletido, responde:
– Já percebi que o seu dia hoje foi difícil. Para mim também não foi fácil. Veio cá a empresa de contabilidade instalar-me um sistema novo, no computador. Sempre fiz as contas na toalha da mesa. Vou ter que aprender a fazê-las naquela geringonça, mas ainda assim aconselho-a a comer perninhas de rã. Foram acabadas de fazer e estão óptimas! A Sagres está fresquinha e é preta.
– Sente-se na esplanada. O fresco da tarde anima as almas e a Sagres refresca.
Sem retorquir o conselho, aceitei a sugestão, como se de uma ordem se tratasse. O Sr. Tói é quem percebe do ofício. De aplicações não percebe ele nem eu. Acertar-nos-emos quanto ao pagamento.
Simples.
Bastam as pessoas. E essas catam-se pelo olhar. Até os seus estados de espírito.
O resto é apenas o resto. Máquinas, ecrãs e tudo.