carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
“(…) toda a gente tinha os seus períodos de neurastenia, nos quais preferia mostrar-se antipática para deixar patente o seu desagrado relativamente ao mundo. Havia de lhe passar.”
Mario Vargas Llosa in “Travessuras da Menina Má”
Sento-me muito pouco inspirada para escrever a crónica. Estou numa fase pouco engraçada da vida, o que posso fazer? Não deixo de ser hilariante. De ter muita graça. Sou moça para ter pensamentos que me fazem rir e não é só mentalmente, a boca, a face, o corpo reagem. Por isso, garanto que o meu sentido de humor está bem e recomenda-se, embora ácido. Não é tanto aquela piadinha inocente e inócua, é mais aquele comentário que, se for dito em voz alta vai fazer alguém rir, mas vai, eventualmente, fazer alguém sentir-se ofendido.
Estou com dificuldade em ver as coisas com a habitual leveza. Na verdade não sei se tenho uma leveza habitual, gosto de pensar que sim. Por outro lado, sempre fui muito dada ao drama. Comovo-me com alguma facilidade (por tudo e por nada, como diz o outro), estou sensível e, há-que dizê-lo com frontalidade, reactiva. Resumindo: não ando bem-disposta.
Estou cansada e isso reflecte-se essencialmente na minha relação com as pessoas. Animais, pedras, areia, pinheiros, telhas, paralelepípedos da calçada, sinais de trânsito (excepto semáforos) não me levantam problemas, mas pessoas, às vezes é difícil. Na melhor das hipóteses só me aborreço, mas também posso irritar-me profundamente.
Claro que o problema não está na humanidade, está em mim. Dramática desde sempre, mimada e com uma tendência congénita para o exagero.
Nestas alturas o que mais desejo é ficar entre as minhas quatro paredes (sejam elas quais forem), em silêncio. E sinto-me ofendida se me incomodam. E para me incomodarem basta uma chamada ou até uma mensagem. E se, por não responder à primeira, insistem com novas tentativas de umas e de outras, o efeito é devastador. Claramente o problema é meu, não tenho dúvida nenhuma: as pessoas são como são e eu é que, com medo que não gostem de mim, me sinto forçada a responder de imediato, mas não quero. E, pressionada, acabo por responder, mal a maior parte das vezes, mas acreditem, e isto joga a meu favor, nunca tão mal quanto me apetecia, porque os meus pais criaram uma rapariga educada e com algum auto-controlo.
Quando me sinto assim, a única coisa a fazer é fechar-me. E não sei se este estado resulta de acontecimentos em particular, se se trata mesmo de uma espécie de tupperwear interno que se vai esvaziando e que necessito de reabastecer, sendo que a única forma de o fazer é isolando-me do que me transtorna: o mundo em geral.
A erosão da idade vai facilitando este processo, já o racionalizei e assumi, para que não se torne um peso, um pecado, um segredo. Assumo a necessidade de silêncio, de ausência de contacto, de ficar metida para dentro durante uns dias e não sinto (como antes) a obrigação de justificar o meu desaparecimento durante uma semana inteira sem dar cavaco (com minúscula por ser a única forma de escrever a palavra sem sair palavrão*) a ninguém.
Se neste momento, em que o tupperwear ainda não está cheio, me pusesse a falar de coisas da vida, como o que se passa na cidade, no país e no mundo, ia ofender pessoas. Não porque pessoalizasse as questões, mas porque as pessoas pessoalizam e isso é irritante e desgastante porque como é óbvio é só uma forma de fugir à responsabilidade gritando “ai que me ofenderam!” e pronto, todo o conteúdo da discussão e a luz que daí pudesse nascer passa para segundo plano porque há um ego ferido. E não há pachorra!
Não sei se isto resulta de acontecimentos particulares, se de um desgaste progressivo, mas quando regresso, devagarinho, sempre devagarinho para não sofrer um choque-social, tenho mais energia e menos zanga para com o mundo.
As pessoas são esponjas e a culpa não é delas. Eu própria me sei esponja, mas sinto que o racio entre o que me expremem e o que absorvo é desproporcional. Daí a necessidade de me isolar em quatro paredes, sejam elas quais forem, desde que não haja esponjas por perto e eu possa ser eu mesma: com roupa velha e esburacada, a comer gelado ao pequeno almoço ou passar o dia a café e água e não ter de lidar com o julgamento de alguém. Abro uma excepção para certos olhares maliciosos ocasionais da Maria, a gata, que de alguma forma me ofendem, mas se ela ainda não percebeu como funcionam as coisas cá em casa ao fim de tanto tempo, o problema é dela.
* eu disse que o meu sentido de humor se mantinha…