Maria Campaniça
Celina Nobre
“O trabalhador dizia a si mesmo: Aqui estou eu, um operário. Porque é que sou operário? Não sirvo para ser mais nada? É claro que sim! Se ao menos me tivessem dado as oportunidades certas, o mundo ia ver como tenho valor. Médico? Cervejeiro? Ministro? Podia ter feito qualquer coisa. Mas nunca me deram a oportunidade certa. É por isso que sou um operário. Mas não pensem que, por estar no fundo, sou pior que qualquer outra pessoa.”
Michael Young, The Rise of the Meritocracy*
A pobreza grassa, como azeite espalhado em pão quente, num qualquer mês de Agosto.
Também na cidade de Beja. E já estamos em Setembro.
Quem já nada tem, e na ausência de si próprio, procura apagar os dias sentado na relva, ou deitado num banco qualquer da praça, talvez ainda à espera de que um raio de sol o aqueça, ou que as moedas pedidas para pão, mas transformadas em álcool, façam o seu papel. As noites são escuras. Como os dias. Até porque muitos dos, que já aqui passam fome, não correm o risco de que a sua distribuidora lhes corte a luz. Há muito que não a têm. Ou nunca a tiveram. Quando entraram num paraíso chamado Europa – acredito que – rapidamente percebam a diferença entre a expectativa e a realidade. E a ausência de luz pode ter sido o primeiro sinal.
Por falar em sinais, sou-lhes sensível.
Conheço Beja. Ou melhor, vivo em Beja há já algum tempo. Já aqui trabalho há quase 26 anos. Fiz também, nesta pequena cidade do interior, o ensino secundário, na década de 80, nunca imaginando que para aqui voltaria, mais tarde, para viver, trabalhar e criar filhos. Mas por humildade e algum bom-senso, talvez já decorrentes da idade, hoje constatei que me conheço melhor a mim, que a cidade, onde vivo. O que à luz duma perspectiva de autoconhecimento nem seria assim tão mau, não fora o facto de não existirmos por conta própria, conforme defende Ortega e Gasset e que, pelo que me diz respeito, não há forma de contrariar. Serei sempre eu e as ditas circunstâncias.
Eram 19h00. Ao tentar sair, do parque de estacionamento, onde havia estacionado o carro a meio da tarde, no centro da cidade, pela primeira vez, senti dificuldades. Tantas as pessoas à espera. Sentadas. Deitadas. Jogadas no chão. Nos parapeitos das janelas. Em todo o lado. De olhos vazios. Amontoadas, mas sózinhas. Tinham em comum o facto de terem fome. Sentia-se a fome no olhar. O abandono. Também visível. A dor de nada ter. De nada ser.
Enquanto procurava fazer a manobra certinha para não causar mais uma desgraça, ia interagindo com quem ainda estava disponível para me dar indicações:
– P´ra frente!
Foi o que fiz, enquanto sintonizava o rádio na antena 2.
Até casa, não muito longe desta realidade, procurei perceber o que tinha visto. Articulei com o que tinha lido, em férias, e que ainda ando a processar. Desta síntese resultaram poucas afirmações que se misturam com muitas mais interrogações.
Das afirmações/interrogações deixo-vos nota:
– A globalização acentuou as desigualdades sociais. Quem procura numa IPSS uma refeição quente, na minha cidade, pelo menos às 7 da tarde, são essencialmente cidadãos estrangeiros. Isto significa que os que cá nasceram, alguns não tenham fome? Não acredito. O que sentem os que passam fome em casa, com vergonha de a assumirem?
– O ar desolado e triste, de quem espera uma refeição, num parque de estacionamento duma cidade do interior, refere-se apenas à ausência de condições de subsistência ou já atinge a autoestima?
– É apenas isto que o ser humano é capaz? É esta a Europa dos valores e da coesão que queremos construir?
– Qual o papel das instituições públicas? Como cumprem os normativos a que estão obrigadas?
– E os partidos políticos? Que leitura fazem desta realidade? Ignoram. Criam uma realidade paralela. Não sei. Só sei que não há paciência para a falta de humildade e de autoconsciência quando, nas eleições, o que já não é aceitável em democracia, ganha terreno. Deputados. Força. Quando se perde a confiança nos iguais, procuram-se messias;
– As autarquias locais, em particular as Juntas de Freguesia e as Câmaras Municipais, que leituras fazem desta realidade? Sim. Já sabemos que promovem e/ou participam nos Conselhos Municipais de Educação. Nas redes sociais. E o que fazem as escolas? Para além de, embrenhadas na ideia de meritocracia, e levando-a ao extremo, darem 20 valores, a alunos do secundário, na disciplina de filosofia;
– As parcerias? Sim. Essa força conjunta que poderia mobilizar pares na mesma direcção, o que faz? Sim. Assina protocolos. Mas depois cada um defende quintais. Normalmente o seu. Depois prestam-se contas. Juntando papéis. Financiamentos assegurados, projectos fechados. Problemas persistentes.
Hoje, como há já muito tempo, não durmo descansada. Não porque me falte o essencial. Talvez nem uma boa parte do acessório. Mas porque a minha cidade é o espelho do mundo. E esse – como sabemos – não vai lá muito bem.
Quem não vê, ou finge não vê, é porque ainda acredita que o seu quintal, não pega com o do vizinho e que as desgraças dos outros nunca serão suas.
Hoje, quando vi Beja, como não a queria ver, senti apenas que poderia ser operária. Que seria capaz de fazer muito bem o meu trabalho, manual. Apenas que não poderia, à nascença, ou a meio do caminho ver-me privada da minha capacidade de produzir, porque o mercado assim o decidiu. E sobretudo da minha dignidade. O resto é o resto. E hoje vivenciei-o.
Quando cheguei a casa, também sem protector para a autoestima, nem faróis para me guiarem, percebi que, por humanidade, também jantei no local onde estacionei, e de onde não fui capaz de sair, apesar das vozes me dizerem:
– É p’rá frente.