carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
“Rotina” de Eugénio de Andrade
São cinco da manhã e estou acordada há duas horas e meia. O início do ano tem-se revelado bem trabalhoso. O que é bom: muitas ideias, afazeres, projectos novos… mas fico ansiosa. E a coisa agora revela-se desta maneira: durmo duas ou três horas, e acordo cansada, mas cheia de electricidade. Há não muitos anos, a coisa funcionava precisamente ao contrário: quanto mais stress tinha, mais dormia. Um dia até adormeci a meio de uma discussão. O namorado da época ficou piurso e com razão.
Sei que tenho falado muito neste processo do envelhecimento, talvez demasiado. Mas tenho andado fascinada com as mudanças. Gosto de documentá-las. Perceber como acontecem as alterações no corpo, na cabeça, no sistema nervoso, nas respostas ao stress, ao sono, ao cansaço, ao amor… a relação com a vida, com o que se passa dentro e fora do meu pequeno círculo, as novas preocupações que surgem, como se sente a indignação, como percepciono o mundo, os outros, o bom e o mau em que vou encalhando.
Acho que o que ando à procura é da forma de envelhecer com graça, sem amargar. A vida não é fácil e dependendo da sorte e de nós mesmos, temos mais ou menos pessoas que gostam de nós e nos preservam e resguardam, mesmo quando ou sobretudo, quando não nos podemos valer.
Tem-me impressionado muito ver a casa da dona M. a ser despejada. A maior parte das coisas que vejo sair são velhas, como ela. E há também pedras, tijolos, restos de tijoleira de outras casas, de outras obras, varões de cortinados, gavetas partidas, bancos de jardim, potes, vasos, garrafões, quilos de papel de jornal, revistas e publicidade… Coisas que alguém deitou fora, que já não lhe serviam. Na verdade, não serviriam a ninguém: são velhas, partidas e sem uso. No entanto, alguém se deu ao trabalho de as juntar, de as arrumar. Imagino que haveria uma organização, ainda que incompreensível para quem, como eu, estava fora da cabeça confusa de dona M., onde a demência e a maldade se foram entrosando, até ganhar a primeira.
Certo é que, despejada a casa, despejado o pátio comum, ponto de partida das lutas que foi levando a cabo com toda a gente que aqui veio parar, o que sobra da dona M. senão as memórias que cada um tem dela? E no meu caso, não são as melhores. É certo que, um dia, deixou-me um pimento e dois limões na escada, mas isso foi antes de me roubar a chave suplente de casa e decidir que queria a minha cama de ferro.
As histórias com a dona M. são uma boa entretenga e dão pano para mangas de tão surreais. Não é arrependimento ou peso na consciência que me faz escrever isto. Encontrar o riso em situações mais negras ou desesperantes tem sido das poucas constantes em mim. Não tenho más intenções no riso, tenho necessidade de gerir o meu mal-estar. Em relação à dona M. queria só que ela fosse uma vizinha que não me destruísse a mobília ou roubasse as botijas de gás.
Agora está internada num lar ou num hospital, as coisas dela estão à mercê dos elementos e dos que lhe são mais próximos e as plantas estão todas a morrer. Quando trouxerem o contentor necessário para levar tudo daqui, não restará mais nada senão as memórias. Nalgum sítio, provavelmente nalgum filme ou série, aprendi esta ideia que me é querida, de que talvez a diferença entre o paraíso e o inferno resida apenas e só na forma como se lembram de nós. E por isso o paraíso e o inferno são mais para quem fica do que para quem parte.
E é por isso que quero envelhecer com graça. Razinza, provavelmente, mas gentil. E ainda que as minhas tralhas sejam lixo aos olhos de quem terá de as despachar, que eu permaneça no paraíso das boas memórias alheias.
Vou tentar dormir melhor esta noite.