dissidências e resistências
Vera Pereira
Paula Lança é uma daquelas mulheres que fala do trabalho com um entusiasmo contagiante. Ouvi-la é uma experiência extraordinária, que nos faz acreditar na possibilidade de um futuro mais inclusivo e mais humanitário.
Assume que servir os outros é o propósito que a move, que se revê plenamente no papel de funcionária pública. Natural de Beja, com 55 anos, professora, deu aulas durante alguns anos na região de Basto, antes de regressar a Beja, em 1997. Desde então foi membro da Assembleia de Freguesia de São João Baptista, em Beja, e passou pela Câmara Municipal, desempenhando funções de assessoria ao executivo, no mandato de 2005-2009. Atualmente integra a Junta de Freguesia de Santiago Maior e São João Baptista, naquele que é o seu segundo mandato, intermitente.
Passou por vários níveis de ensino, mas nos últimos vinte tem-se dedicado quase em exclusivo à educação de adultos, e em particular à educação nas prisões. Membro da Associação Portuguesa de Educação nas Prisões, é representante da região sul e ainda Coordenadora Pedagógica de Escola associada ao Estabelecimento Prisional de Beja.
A conversa decorreu a 13 de outubro, Dia Internacional de Educação nas Prisões, que coincide com o dia em que o Conselho Europeu publicou as primeiras recomendações sobre educação nas prisões, em 1989.
Escolheu dedicar-se ao ensino para adultos. Quais as razões que estão por detrás desta opção?
Normalmente não é a primeira escolha para os professores, são os restos dos horários. Quando regressei a Beja fiquei colocada na D. Manuel, num horário noturno, a dar aulas a adultos. (…). Aos poucos fui-me ligando muito a este público, e na altura em que comecei a puder escolher os meus próprios horários, optei. Desde 2002 que uma das minhas áreas de eleição é o ensino nas prisões, e desde que iniciei o ensino prisional nunca mais deixei. Costumo dizer a brincar aos meus alunos que a minha sentença é maior que a deles, que já estou lá há mais tempo.
A primeira grande diferença que estabeleço é entre o ensino regular e o ensino para adultos. Costumo utilizar a imagem da invisibilidade para o ensino de adultos dentro do sistema educativo, e dentro deste a educação nas prisões ainda é mais invisível.
Para mim, que já experimentei vários tipos, este tem sido o ensino mais gratificante e ao mesmo tempo mais desafiante, por ser muito individualizado e atender às características, ao ritmo e ao perfil de cada um. Para mim é sempre uma descoberta. Por exemplo, faço Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, que assenta em processos que partem de uma abordagem autobiográfica, em que as pessoas escrevem sobre a sua história de vida, têm de abordar certos temas, efetuar determinadas reflexões, fazer pesquisas e estudos de determinados assuntos, mas sempre com base nas suas próprias experiências de vida. É um mundo completamente deslumbrante – ajudarmos as pessoas a desabrochar. O processo no início é difícil para as próprias pessoas, porque habitualmente não escrevemos a nossa biografia, mas é muito interessante. Esta gratificação e este desafio existe nas prisões, numa outra dimensão.
Qual a resposta, o feedback que tem dos alunos, pelo facto de poderem aceder a formação, ensino e educação?
Regra geral esta população tem muito baixas qualificações, é oriunda de territórios que determinam em grande parte quem vão ser e o que vão fazer – não é só o enquadramento familiar, é o contexto do bairro que é determinante para o projeto de vida –. Para mim é angustiante, porque as pessoas não deviam ser condenadas pelo local onde nascem, devia haver oportunidade de não estarem, logo à partida, em desvantagem.
Ainda encontramos pessoas que não sabem ler nem escrever, e que levam um ano, dois e três a tentar aprender a ler e escrever. A maior parte é de etnia cigana, mas não se pense que é exclusivo. Ter chegado a determinada idade e nunca ter desenvolvido determinadas competências muito básicas, como o reconhecimento da escrita, cristaliza de alguma forma as competências de aprendizagem, tornando muito difícil aprender e prolongando o processo. Aí entra novamente o desafio de adaptar para conseguir, de alguma forma, tirar lucros do trabalho que se vai fazendo.
Mas este ensino é obrigatório, ou opcional?
Não são obrigados a ir para o ensino. Para alguns faz parte do plano individual de reinserção, constituindo uma das medidas prioritárias. O plano é para cumprir, pelo que chegam à escola “obrigados”, pois são penalizados se não cumprirem, ou não lhes são concedidas saídas precárias, por exemplo. O que é certo é que há pessoas ali que fazem toda a escolaridade connosco, desde o segundo ciclo até ao secundário, porque asseguramos todos os ciclos. Alguns criticam, alegam que só vão lá por causa das benesses, mas para alguns já se tornou uma necessidade, e nós percebemos isso. Tive recentemente o caso de um aluno que saiu em condicional, e a primeira coisa que fez foi enviar os trabalhos que tinha ficado de fazer para validar a unidade, e inscreveu-se logo para continuar o percurso e concluir o secundário.
É muito bom…
É muito bom! E é esta gratificação que sinto ali e que não senti noutros níveis de ensino, com esta intensidade. O relacionamento social, o modo como lidamos com as pessoas, como estabelecemos relações. As aulas nem sempre são convencionais, porque há preocupações e assuntos pessoais que temos de abordar, noticias que viram na televisão e sobre as quais temos de conversar um bocadinho, porque ali os professores trazem um bocadinho do mundo exterior. E alguns alunos que têm outro perfil, mais conhecimentos e capacidades, nem sempre encontram parceiros, interlocutores à altura para poderem abordar determinados temas, e muitas vezes é na escola que isso acontece. Os testemunhos deles dão conta disso.
Já tive alunos que quando terminaram o percurso pediram que não os tirasse da turma, porque enquanto estão inscritos podem ir às aulas, não estão fechados na cela, o que permite um contexto de conversa e experiências que não têm fora do contexto da escola. É um ponto de equilíbrio muito importante. E o facto de sermos professores, pessoas externas, permite-nos estabelecer uma relação mais empática, onde estão mais à vontade, e onde os professores acabam por ser confidentes.
Quase todos os professores que dão aulas no estabelecimento profissional saem satisfeitíssimos com a experiência, muitos querem voltar. Alguns só vão lá dar aulas a uma turma, mas querem manter aquele elo de ligação, a parte humana.
Recentemente tivemos uma conferência internacional sobre ensino nas prisões, a primeira organizada pela Associação Portuguesa de Educação nas Prisões, onde um dos oradores falou de um princípio que existe em alguns sistemas, o de que o recluso um dia vai ser nosso vizinho, o que destaca a importância de dar a essa pessoa todas as ferramentas e oportunidades que puder para ser um bom cidadão. E como costumo dizer sempre, pessoas são pessoas.
Nós ali sentimos que podemos fazer a diferença, e acredito que ao fim de uns anos poderemos ver o impacto que terá. Neste momento, a educação nas prisões é a melhor ferramenta que temos de reinserção social.