“Nesta hora”

Do inverno das coisas ao poente do infinito

Ana Fafe

“Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda”.

Percorro os campos e vejo flores, amarelas, que pintam o manto verde da terra, tudo floresce e parece ganhar vida, é primavera. Pois, mas estamos no outono e foram as chuvas, que tanto aguardamos há meses, as responsáveis por esta mudança de cores neste novembro.

“Nesta hora” – nome do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas”, de onde “roubei”, também, a primeira frase desta partilha – são as palavras que me vão ajudar a confessar não me agradar regressar, quatro meses depois, para voltar a insistir em números. Sempre gostei do 10. Hoje abomino-o. Faz-me não conseguir suportar as despesas da vida e ter pensamentos tristes, de tempos que julgava perdidos.

Este é o “Tempo dos coniventes sem cadastro. Tempo de silêncio e de mordaça. Tempo onde o sangue não tem rastro. Tempo de ameaça” e voltamos à Sophia, assim como ao mesmo livro de poesia. Quanto conseguimos calar, quando deparamos com mais um número: 65. Este referencial que está na base do pagamento de muitos, falando do mínimo, o salário claro!, representa menos seis dezenas de euros, todos os meses, e dores fortes que contraem, obrigando a uma certa perda de peso forçada.

“Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?”, pergunta o poema de Pessoa, frisando “Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo”. Se nem a primavera chega na altura dela, como podemos esperar que outras promessas, não dependentes das alterações climáticas mas sim de outras vontades, se cumpram?.

O que é aquilo ao longe, uma floresta? O verde espalha-se e as amarelas crescem na erva que brota? O asfalto continua difícil de fazer, com buracos multiplicados à espera que mais água – e rezamos para que continue -, os transformem em crateras! Já não se ouve o apito dos comboios e nos ares, só as aves, as poucas que sobrevivem à secura desta época, levantam voo!. Alberto Caeiro gosta que “tudo seja real”. Eu prefiro que “tudo esteja certo”, ficar de “olho aberto”, ver “as coisas de perto, que é uma maneira de melhor pensar”. Ver “o que está mal” e “como é natural” tentar “sempre” não me “deixar enganar”, tal como o Casimiro. E já cantava o Sérgio Godinho, em “Cuidado com as imitações”, “A moral deste conto vou resumi-la e pronto, cada qual faz o que melhor pensar. Não é preciso ser Casimiro para ter sempre cuidado para não se deixar levar”.

“Nesta hora”, e com a mudança da hora, digo-vos que a minha reflexão é sobre alterações, as climáticas e as climatéricas. No momento em que escrevo estas palavras, a minha disposição anuncia alguma neblina matinal, um dia cinzento e com gotas que me podem molhar. E depois do estado do tempo para os próximos dias, devo anunciar que o Natal está para breve e o final de mais um ano também. Sou boa a perspetivar estas andanças, mas mesmo assim não consigo convencer-me de avanços para mais de trinta anos.

Ignorância é: “Condição da pessoa que não tem conhecimento da existência ou da funcionalidade de algo: ignorância dos acontecimentos contemporâneos”, diz o Dicionário on-line de Português. É assim mesmo, não possuo a “hora limpa da verdade”, mas sou da modernidade e como qualquer pessoa que se acha “moderna” uso a Internet.

A questão é que, e de novo parafraseando a famosa rede sem fios, ignorância também quer dizer “Estado da pessoa desprovida de conhecimentos; sem cultura; condição de quem não tem estudo: ignorância literária”. Aqui a coisa já é mais grave. Assiste-se a alguns eventos, cinema, teatro e até se folheiam alguns livros. Como pode a “dita” dizer isto. Ela que se coloque no lugar de quem luta todos os dias para pagar o pão, para ver quanto sobra. “Isso de pagar para ter cultura é para os que podem”.

As luzes acendem em breve, os animais vão tomar o seu lugar junto do menino, os doces vão brindar mesas de alegria, o champanhe vai fazer cócegas no nariz e janeiro é já ali…

“As redes são passageiras, as arquiteturas da fuga. De toda a água que corre, de todo o vento que passa. Quando uma teia se rasga ergo à Lua a minha taça e vejo nascer no espelho, mais uma ruga”. No fim disto tudo e para os mais pacientes, aqueles que ainda gostam de pensar, pergunto, tal como o Palma: “Será que és alguém, de novo?”

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