Nasci com um coração grande. Grande demais. Grande a ponto de ter nome de doença. Não sei se foi por isso que comecei a namorar na primária e a escrever cartas de amor a todos os meus coleguinhas. Também não sei se foi por isso, mas desconfio, que no secundário arranjei namorados para cada dia da semana. Eles sabiam e nem se importavam muito, e eu sentia-me bem e feliz com todos. Amava-os todos, cada um à sua maneira, cada um à minha maneira. Parecia que o meu amor nunca acabava, transbordava dos rapazes para os cães e gatos, primos e sobrinhos, coleções de bonecas, plantas e flores, livros, deuses e revoluções. Amava tudo com ímpeto e fervor, com paixão e verdade. Incontinentemente. Nunca reprimia o afeto que explodia instantaneamente em tudo o que desejasse ou admirasse. Mesmo quando o meu pai me chamou vadia. Mesmo quando a minha mãe punha a tábua do caixote a expulsar o demónio que se tinha instalado no meu corpo. E apesar disto tudo, e de as minhas amigas me desprezarem cada vez que os namorados delas se tornavam meus, o coração continuou a crescer, indomável, fecundo, inclusivo, idealista, generoso.
Quando atingi a idade adulta, resolvi criar uma pequena comunidade de amor livre, onde acolhia todos os que quisessem amar e ser amados. Sem ciúme, sem posse, sem controlo, sem esconderijos e mentiras. De forma autêntica e espontânea. E eu sentia-me plena e verdadeira, espalhando sentimento e emoção, sem excluir ninguém, sem amarras e sem falsas moralidades.
Mas um dia, depois de ter estado nos braços de vários amantes, o coração colapsou e levaram-me para o hospital. E veio o veredito médico. O meu coração era insustentavelmente grande. Teria de ser operada. Caso contrário não me restaria muito mais tempo de vida. E fui operada, e fiquei com um coração normal, de tamanho normal.
Casei um ano depois com o Francisco, pela igreja e tudo. Ele é um bom homem e um bom marido. Oferece-me rosas e leva-me a passear à Serra da Estrela. Não quer que eu use decotes, mas ninguém é perfeito. E eu, como fiquei com um coração normalizado, faço-lhe pudim flan todos os fins-de-semana e encorno-o sem ele saber com o senhor Luís da Agência de Viagens.