dissidências e resistências
Vera Pereira
Vera Lopes Neca tem 43 anos, é psicóloga clínica de formação, ainda que nunca tenha exercido. Sempre se interessou pela área social e confessa ter um gosto particular pelo contacto de proximidade com as pessoas. Trabalha com a porta do gabinete aberta, o que promove a relação de proximidade que tanto aprecia. Está na CerciBeja há 12 anos, onde, além de psicóloga da formação profissional, coordena a unidade de qualificação e emprego e é presidente do conselho de administração.
Como chegou aqui à Cerci?
Um bocadinho por acaso. Embora seja de psicologia clínica, nunca exerci nesta área. Trabalhava na área dos projetos de desenvolvimento social e com pessoas em situação de vulnerabilidade, e na altura o projeto em que estava a trabalhar, em Ourique, estava a terminar. Surgiu aqui uma oportunidade de trabalho, abriram aqui um concurso para psicóloga clínica, e decidi concorrer. Por acaso ainda não me tinha imaginado a trabalhar nesta área. Mas concorri e acabei por entrar para a Cercibeja.
Como passou do cargo de psicóloga clínica a diretora?
Quando comecei integrei a equipa da formação e da qualificação profissional e emprego como psicóloga. O meu papel era fazer atendimento aos nossos clientes[1] que estavam em formação profissional, fazer a seleção de formandos.
Mas tenho este bichinho cá dentro que não me deixa, nos sítios por onde tenho passado, limitar-me ao meu trabalho, acabo por me ir envolvendo, e porque trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade, facilmente vou entrando na vida delas…
Para fazer mais?
Percebemos que temos de fazer mais do que as sete horas de trabalho para ganhar o nosso vencimento ao final do mês. E acho que quando estamos nestas instituições temos de contribuir para o seu crescimento e para dar melhores respostas às pessoas que precisam. A Cercibeja, embora tenha a sua missão e os serviços que presta, é muito mais do que isso.
Tinha boa relação com quem estava no conselho de administração na altura, comecei a sugerir umas coisas, e pouco depois de ter entrado realizaram-se eleições, e embora a lista se mantivesse praticamente a mesma, houve algumas saídas, e convidaram-me para integrar a direção nessa altura. Quando me fizeram o convite fiquei um pouco apreensiva, porque acarreta muitas responsabilidades e disponibilidade, mas pensei porque não? Se estamos nas instituições, e se achamos que há coisas que podem melhorar e que podemos fazer, porque não envolvermo-nos de outra forma? Entrei em maio para a Cerci, em outubro estava na direção, e a partir do momento em que entrei para a direção, se já havia aquela vontade de fazer mais todos os dias, a partir daí…
Porque começou a ter condições para efetivamente implementar?
Porque no fundo tinha outro poder de decisão. Colaborava nos nossos planos, estratégias, opinava e podia decidir sobre o que se iria fazer. Agora já quase que não me imagino sem ter este ritmo, esta dedicação e este papel tão ativo.
Quais as vossas funções em termos sociais, e que valências possuem?
A instituição em si está organizada em torno de três valências: lares residenciais, centro de atividades para a capacitação e inclusão, e a qualificação e emprego.
Trabalhamos com pessoas com neurodiversidade, e muitos deles trazem outras questões associadas, mas o foco são as pessoas com neurodiversidade. Com o passar do tempo surgem outras situações de vulnerabilidade, como as questões económicas, envelhecimentos dos cuidadores… Os lares residenciais funcionam como a casa destas pessoas, das 38 pessoas que lá vivem; muitos não têm família de retaguarda, outros têm, mas vão ficando envelhecidas ou não têm capacidade para poder dar uma resposta, portanto estão connosco a tempo inteiro.
Nos últimos tempos começamos também a desenvolver projetos que podem dar resposta a outro tipo de vulnerabilidades que não só a neurodiversidade.
A que projetos se refere?
Há algum tempo entrámos no Programa Incorpora, que trabalha a questão da integração profissional de pessoas em situação de vulnerabilidade que podem não ter neurodiversidade. No centro de atividades para a capacitação e inclusão temos 60 clientes. No fundo, esses clientes têm neurodiversidade, têm competência e capacidades, mas não reúnem, à partida, condições para poderem ter outro tipo de integração. Esta resposta está numa fase de reformulação.
Trabalhamos com eles as artes, o desporto, a parte da jardinagem e agrícola, que são atividades mais ocupacionais, e quando percebemos que poderão ter algum sucesso na integração profissional, começamos a procurar resposta nesse sentido. Existe uma medida, as atividades socialmente úteis, que permite que vão para entidades, não a tempo inteiro, mas que funcione como experiência do que seria ter uma atividade profissional. Temos jovens que estão nesta situação, e jovens que entraram numa atividade socialmente útil, e neste momento têm contratos de trabalho e estão vinculados às entidades. Há um percurso. Mas o objetivo desta resposta é que eles tenham uma ocupação e que vão mantendo as suas capacidades e competências.
Temos muito trabalho desenvolvido na área das artes, sobretudo da pintura, das expressões, ao nível do teatro, da música e da dança, e a área do desporto também é muito dinâmica, temos equipa de futsal, de andebol, e iniciámos este ano o projeto da ginástica inclusiva.
Começamos a candidatar-nos a projetos cofinanciados, que têm uma duração limitada no tempo, mas se virmos que são atividades de que tiram grande partido, e prazerosas, tentamos de alguma forma mantê-las em funcionamento.
Estão mais dedicados à qualidade de vida ou à integração na sociedade?
Promover a qualidade de vida e o bem-estar dos utentes, e com a inclusão na comunidade também. Depois temos ainda a integração profissional. Mas o lema da Cerci é construir felicidade, é o principal objetivo.
Em termos pessoais, o que é que esta função lhe traz?
Em termos pessoais é muito gratificante este trabalho que faço, não me via a fazer outra coisa neste momento. Em termos da minha vida familiar e pessoal fica muito comprometida porque requer uma grande disponibilidade, mas como temos muitos eventos e campanhas, acabo por envolver a família, mobilizo-a. Acaba por ser gratificante porque percebemos que podemos contribuir para o bem-estar de alguém, que podemos fazer a diferença na vida de alguém.
Nas entrevistas de emprego, recorrentemente dizem que têm experiência profissional, mas não de trabalho com pessoas com neurodiversidade, mas essa é a parte mais fácil do trabalho. São pessoas fáceis de trabalhar, e não obstante as características próprias colaboram muito, é fácil satisfazê-los.
Por outro lado, é difícil, porque no dia a dia estamos aqui entre a burocracia, os papéis e a resposta que temos de dar. Entre as necessidades e as dificuldades que as pessoas nos apresentam, e muitas das vezes a burocracia não nos deixa dar a resposta que é necessária. Temos vagas limitadas e todos os dias somos confrontados com famílias que não sabem o que fazer, onde deixar os filhos e os familiares a quem prestam cuidados. Ainda que ao longo do tempo percebamos que, àqueles a quem conseguimos dar resposta, há um percurso de melhoria das condições, que conseguimos contribuir para construir felicidade. Que fazemos a diferença. E ver o feedback da comunidade, a forma como as pessoas lá fora nos acolhem, acarinham a nós e aos nossos clientes, e se envolvem é bom e muito gratificante.
[1] O uso do termo clientes relaciona-se com um processo de certificação da qualidade, tendo em conta que prestam um serviço, comparticipado pela Segurança Social, mas comparticipado também pelas famílias, que pagam para que o serviço seja prestado.