“No reino do sofá”

Maria Campaniça

Celina Nobre

“No reino do sofá”

“Que a minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.”

Clarice Lispector 

Nota: Adaptação de trecho do livro “Um Sopro de Vida (Pulsações)”, de Clarice Lispector.

Naquele verão quente o aroma a jasmim entrava pela janela. Era o tempo das janelas abertas e das trepadeiras chegarem até ao quarto. Em flor.

A cama larga, pejada de almofadas de seda colorida, parecia um apontamento naquele quarto amplo de cores terra, onde sobressaíam os tons cálidos do ocre e o do açafrão. O chão de madeira, a cheirar a nova, rangia, mesmo que o pisássemos descalços e devagar. Os tapetes kilim combinavam com a leveza das cortinas de cores vibrantes, por onde a luz entrava, alumiando toda a divisão. Um espelho debruado a metal e madrepérola reflectia a luz, criando imagens. Por cima da cama. Ao cair da noite, as sombras tornavam o quarto mágico. Os móveis de madeira escura, de linhas simples e confiáveis pareciam, na penumbra, seres com carácter. Duradouros. Invencíveis e intocáveis, até ao caruncho. Durante muitos verões aqueles móveis ficaram ali. Decorando o quarto. Imunes ao ciclo da vida, como se os próprios bichos da madeira não acasalassem e não se reproduzissem para atacar a própria madeira. E se as casas, por estarem assentes em estruturas, durassem para sempre.

O quarto tinha vista para o pátio. Esse era o centro da habitação. Os pormenores arquitectónicos geométricos, salpicados de mosaicos cerâmicos, junto à piscina, foram desenhados pelas mãos do sonho. Numa altura em que sonhar era apenas viver e projectar era para dentro e para sempre. O Pátio era florido. Em vasos de barro cresciam, ao ritmo das estações, flores e ervas aromáticas. As mesmas que, nos convívios com amigos, davam sabores a pitéus partilhados. Ameijoas. Saladas. Temperadas. Regadas. Com muito vinho. E muitos sonhos. Noutros espaços da casa. Igualmente, virados para o pátio. A cozinha era um corrupio. De gente. De tachos. De cheiros. Pura alquimia. Euforia.

Os gritinhos finos das crianças, disputando a boia de borracha, com a forma de unicórnio, povoavam a piscina. Dando vida ao pátio. Animando a tarde e relembrando, os convivas, que a vida escorre, como areia fina por entre os dedos. Embalados pelas conversas que se cruzam e pela música de Nina Simone “You don’t know what love is” a noite chega, sem que o grupo de amigos entenda a subtil mensagem do devir. A animação continua. As crianças já recolheram e dormem agora o sono dos justos. Depois de mais uma animada festa do pijama. Parecem passarinhos exaustos depois duma longa maratona de voo. Acolhem, agora, ao aconchego dos sofás. É daí que sairão, no dia seguinte, para continuar a esvoaçar.

No final da noite, uns saem de fininho, outros encalham no recipiente que dava acareio aos guarda-chuvas e fazem um chinfrim tal que ecoa, na noite, e quase acorda o inverno. Quem fica regressa ao quarto. Os lençóis de cetim ainda lá estão límpidos, escorregadios, mas acolhedores. Na cama que parecia um apontamento no meio do quarto, que cheirava a jasmim.

Até ao dia. Um dia houve em que a casa acordou vazia e adormeceu escura e silenciosa. O barulho persistente das festas era já uma memória. Longínqua. As crianças já haviam crescido. Mudaram de sítio.  Ao lado da piscina, no pátio, uma boia de borracha já tinha perdido a forma de unicórnio. Os resquícios da borracha já pouco relembravam a pureza. Encarquilhados estavam pelo calor dos verões que passaram. Imperceptíveis. Da força restava a de quem, sozinha, ainda vagueava pela casa, já com menos divisões. As panelas dos acepipes, de outrora, ganharam agora uma nova função: ferver leite magro, com raspas de limão e canela, para fazer papas de aveia. Que comeria sozinha.

Uma gata dormitava no sofá, camuflada por uma manta de xadrez, e aguardava-a, para lhe aquecer os pés.

Madalena era agora uma rainha. Enroscada num sofá. Com uma gata que ronronava aos seus pés. Esse era agora o seu reino. O reino do sofá.

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