Não se pode estar direito

carrossel dos esquisitos

Ana Ademar

«Não se pode estar direito
Quando se tem a espinha torta»*

 Sou uma pessoa que boicota coisas quando se sente ofendida. Vejo o boicote como uma das poucas formas de luta individual que está ao alcance de pessoas como eu: cidadãos de pleno direito, mas com um muito ridículo poder de compra e nenhum poder de influência.

Neste processo de adultar em que ainda me encontro (não sei se algum dia lá chegarei) uma das coisas que mais confusão me faz, é a sensação de que o mundo está de tal forma do avesso que entendemos o erro propositado como normal. Mesmo quando este erro tem consequências nefastas na vida de pessoas e tem como única meta o lucro.

A ganância comanda o mundo e nós, os consumidores com poder de compra risível e sem nenhum poder de influência, encaramos como normal que se deixe morrer gente se o objectivo for fazer mais uns cobres, mais uns ricos ou os ricos ainda mais ricos. Parafraseando Desmond Tutu, quando damos de caras com uma injustiça e resolvemos assobiar para o lado, estamos a tomar o partido do opressor.

Tenho uma estratégia, boa ou má, ainda não sei: se descubro que afinal, a Maria da Graça é uma fascista de primeira apanha, deixo de lidar com ela e conto a toda a gente; se descubro que o Zé Paulo é um porco que só quer ganhar dinheiro à custa dos migrantes que, segundo o próprio, está a “ajudar”, “deixando” que 50 pessoas durmam no chão daquele casarão sem condições ganhando com isso, digo a toda a gente que conheço e deixo de lidar com ele. Ofendem-me pessoalmente e prejudicam a cidadania. Deixo de lidar.

Aplico esta regra aos negócios e empresas. Como acho abusivas as taxas cobradas pelos bancos, não pago com cartão negócios pequenos, nem tenho o serviço n’Os Infantes. Evito ir às compras ao domingo, porque acho que os funcionários dos hipermercados têm direito a estar com a família. Nestes dois exemplos que dei, há uma coisa em comum: eu é que me lixo. No primeiro caso perco os clientes que vão “só ali levantar dinheiro” e já não voltam – possivelmente porque nunca chegam a encontrar uma das raras caixas multibanco do centro histórico de Beja; no segundo caso, o domingo é o dia que eu tenho livre e me dava mais jeito despachar as compras e preparar a semana. Lixo-me, mas é assim.

Sou completamente insignificante e os meus boicotes têm nenhum efeito prático. Analisando a fundo, ao boicotar uma grande empresa estou na verdade a boicotar a minha própria vida. Mas caramba! Faço o quê? Finjo que não sei que a Procter & Gamble continuou a vender tampões depois de saberem que estes estavam a provocar a morte e doenças graves às consumidoras? Finjo que não sei que a Nestlé conscientemente matou e provocou malformações e deficiências graves a milhares de bebés e crianças em países sub-desenvolvidos? Assobio para o lado quando sei que a Johnson & Johnson sabia perfeitamente das consequências cancerígenas que advinham do uso continuado do seu pó-de-talco? Há muito mais, mas fico por aqui, tenho um número limitado de caracteres – e o mundo é um calhamaço sem fim. E penso agora na importância de um acento: carácter, afinal é disso que falamos, não?! Alguns dos boicotes não consigo cumpri-los na íntegra: a minha gata só come Friskies que é uma das marcas pertencentes à Nestlé e eu gosto que a minha gata coma, mas já não provo um Twix há que tempos, por exemplo. Deixei de usar Tampax, Evax, Ausónia, Fairy, Neoblanc, entre outras, todas pertencentes à P&G. É muito difícil de saber todas as coisas que eu não posso comprar e por isso quando vou às compras, levo duas listas: uma com o que preciso, outra com o que não posso comprar. Também boicotei a Chiquitita, mas este é um boicote básico: são só bananas.

O Qatar é um país onde os direitos básicos humanos não estão sequer perto de serem respeitados, a construção de estádios significou a perda de milhares de vidas e profundo sofrimento a outras tantas que vivem no limiar da escravatura. Tal como muitos migrantes no nosso país. A nossa veia negreira continua viva e pulsante!

O processo que levou o Mundial de Futebol para o Qatar é profundamente sujo, pantanoso. A própria FIFA é uma organização muito pouco limpa ou transparente. Se eu gosto de futebol? Nem por isso, como já aqui escrevi noutro texto, prefiro a bola. São duas coisas diferentes. A bola é uma desculpa para me sentar numa esplanada a beber imperiais, a comer uns caracóis e emocionar-me com a emoção dos outros.

Fará alguma diferença ao mundo eu não ver os jogos do Mundial? Não. O que faria diferença era os jogadores dos milhões recusarem-se a jogar. O que faria diferença era as selecções posicionarem-se de forma mais veemente (façamos justiça, há quem esteja a falar sobre isto, mas claramente não chega). O que faria diferença era os representantes dos governos não comparecerem aos jogos e explicarem porquê. O que talvez fizesse diferença era as federações de futebol dizerem: «senhores da FIFA, a gente assim não brinca» e baterem com a porta.

Falo disto não porque queira boicotar a selecção nacional, mas se ela não se esforça por andar direita, não deveria eu fazer alguma coisa? Exigir-lhe que se endireite?

É que eu acho mesmo importante tentarmos ter a espinha direita, e sei, por experiência própria, que é mesmo muito difícil consegui-lo. No entanto, é fundamental tentar, e isso requer esforço, atenção e vivo espírito de cidadania. É que o mundo que nós criámos, a vida como a vivemos, mesmo sem grande intervenção nossa, encarrega-se de nos ir vergando.  Quando damos conta andamos com o nariz no chão e isso não é posição digna para um cidadão.

*verso da música “Portugal, Portugal” do grande Jorge Palma

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