Maria Campaniça
Celina Nobre
“Os velhos acreditam em tudo,
As pessoas de meia-idade suspeitam de tudo,
Os jovens sabem tudo”
– Oscar Wilde –
As manhãs acordam iguais.
A torre lá está a ditar as horas. O tempo escorre. Difícil de registar. Até pelos relógios. A que não falta corda.
Na chávena do café, ou melhor, do leite com café, não há resquícios de COVID. Seja lá isso o que for. Apenas um ligeiro aperto no peito dificulta a respiração. A refeição. Que há muito já toma sem vontade. Desde que mora num sítio, onde moram os mortos. Com quem fala, com o mesmo entusiasmo, com que não pode falar com os vivos.
– E a Kika?
Pergunta insistentemente.
As carrinhas entram e saem. Tarefas inadiáveis. Fardas movem-se ao ritmo da urgência e vestem pessoas a quem alguém deu, um dia, a responsabilidade de cuidar. Assumiram-na. Mulheres. Que ousaram cuidar. A tão baixo preço, porque se vestem de coragem!
Acabada a refeição, a Bia recolhe ao quarto. Senta-se na cadeira que lhe resta. Encostada à janela, embaciada pelo tempo chuvoso, lembra-se do Sr. Franco. De quando era criança e que eram vizinhos. Ambos moravam na Praça. Do tempo em que lhe pediu um cão pequenino e que ele lho ofereceu. A piuguinha. A pequena cadela que nasceu vestida de meias. À nascença. Daí que o nome fosse consensual. A mesma que morreria assassinada por caçadores, passado pouco tempo. Numa altura em que os lutos eram mais rápidos e havia vida, para além das janelas embaciadas.
– E o Sr. Franco? Ainda está vivo? Pergunta-me, sucessivas vezes, debaixo da árvore, que agora teima em não ser casa.
É Inverno. As árvores recolhem. Também. Demitidas das suas funções mais poéticas, sendo apenas árvores. Como se a função primeira não lhes bastasse!
Resta o quarto. E a impossibilidade de dele sair. As revistas cor-de-rosa anunciam os mesmos acontecimentos. E fazem pilha na cabeceira. Na casa do Sr. Franco. À espera de que as leiam. Que à cor original se juntem outras cores. As de quem lê. E Bia é feita de cores. Dos verdes que lhe matizaram a juventude, numa encosta solarenga, do Monte da Rocha, antes da vida a ter tornado viúva. Vestida de negro, dando vida e cor a quem trouxe ao mundo. Verde esperança, quando acompanhada pelo tio Zé, bailava nas Alcarias. Era o tempo dos acordeões. Dos vestidos feitos à medida, na costureira de Aljustrel. Dos sapatos de pele e de salto fininho que se vendiam, na cidade, às meninas do campo, com pés de Cinderela, para bailar nas Alcarias.
– Não tenho óculos. Deixei-os em casa. Logo leio, quando voltar para casa.
Chega o iogurte da ceia. Ajuda para vestir o pijama. Comida não quer. Veste o pijama e aconchega-se.
Falamos ao telefone. Digo-lhe, sem ainda saber nada da vida, que é importante ter coragem. Digo-lhe também que a vou buscar no Natal.
– Quando é o Natal? Responde-me. Não esperes por mim. Não tenho COVID. Apenas aguardo pela tia Marina. Ela veio comigo. É com ela que me irei embora.