à primeira segunda do mês
Filipa Figueiredo
Esticou o braço e espreguiçou-se, finalmente conseguiu acordar com total desprendimento. Tinha vivido demasiado tempo cativa na sua própria inquietação. Todos os dias acordava presa a um lugar, a um tempo, a um acontecimento, a uma emoção, a um instinto. Fazia questão de adormecer com desejos que a faziam despertar para o desassossego do dia a dia. Era uma espécie de fé, numa humanidade que se mostrava diariamente dramática, que a impulsionava à fatídica luta contra processos burocráticos, que se acumulavam edificantemente na secretária do seu departamento. A melhor amiga da menina M definia-se assim pela simples crença na paz do mundo, e que essa paz só se concretizaria se cumprisse a penitência diária em ultrapassar o Bojador ou as Tormentas que lhe aparecessem à frente. Nomeadamente descongestionar as filas nos supermercados, os atrasos em consultas, os pagamentos nas finanças, os constrangimentos informáticos da segurança social, as formações profissionais, os relatórios de avaliação, a substituição da máquina de lavar, entupimentos de esgotos, mobbying laboral ou chantagens emocionais de um qualquer familiar. Ou seja pequenos nadas que, juntos, prendiam a alma a um complexo humor, que rapidamente se poderia transformar em raiva. Felizmente conhecia saídas e artérias de todas as instituições que tentassem obstruir o fluxo vitalício que ainda lhe restava e consequentemente enfrentar a vida em toda a sua incompreensibilidade, pelo menos até ao fim do dia. A pausa desta mobilidade ilusória seria depois de jantar. Antes de se deitar no leito de Procusto, lá tomava a drageia que a ajudava a sonhar, mas enquanto as insónias pintadas de Exel, documentos empilhados, conversas com a Senhora B ou com o Senhor H, ponteiros de relógio e sons de telefones a tocar, não desaparecessem sentia-se agrilhoada a uma realidade preocupante. Não tremia a terra, não se ouviam prédios a cair, bombas a rebentar, balões a voar ou comboios a colidir, mas a angústia e o sentimento de prisão não a deixavam adormecer.
Na manhã anterior, depois de colocar a torrada no prato, ficou hipnotizada a olhar para o buraco em forma de árvore que desenhava o centro da fatia de pão. Uma espécie de fenómeno de apofenia. Observou a torrada cirurgicamente, deu-lhe duas ou três voltas e confirmou. Uma árvore perfeita, cheia de ramos verdejantes na sua torrada. Só poderia ter algum significado místico. Sem dúvida que estaríamos a chegar àquela fase maravilhosa e pacífica entre guerras, aquela fase em que juramos não cometer de novo tais atrocidades, aquela fase antes da memória desvanecer e nos voltarmos a autodestruir. Aquela fase propícia a crenças, futurologias e profecias.
Cercada por estes pensamentos rapidamente se despachou para ir para o trabalho. Seguiu a sua rotina, atendendo telefones e carimbando licenças, mas sempre presa à interpretação simbólica daquela imagem que mastigou ao pequeno-almoço. O dia passou num ápice, pois o rizoma que entrelaçava os seus pensamentos não parava de crescer, procurando um espaço terreno ideal para enraizar. No final do dia, a caminho de casa resolveu atravessar o parque, sentia que precisava do vento para compreender melhor a estrutura das suas ideias. Percebeu que pequenas descobertas não derivavam de um princípio, mas de diferentes pontos de observação, começava a sentir uma estranha leveza provocada pelo seu novo estado múltiplo. Experimentava uma rara sensação de liberdade e, ao mesmo tempo que os seus pensamentos voavam, o seu corpo fixava-se na terra, que o engolia lentamente. Esticou o ramo e espreguiçou-se, finalmente conseguiu acordar com total desprendimento. Ao romper da fresca madrugada reparou que tinha dançado a noite inteira, ao som do vento e das folhagens do seu vestido.