O poço

Maria Campaniça

Celina Nobre

No Monte da Rocha havia um poço. Um barranco também. Que corria o ano inteiro, alimentado pelos invernos chuvosos. Desde a rua do monte bastava descer uma ladeira ingreme e rochosa e chegávamos à horta. Era lá que a roupa se lavava com sabão azul e branco, carregada à cabeça pela minha avó, com uma rodilha de trapo, tão bem feita, que não havia inclinação que a pusesse em causa. Nem na descida, nem na subida. Já lavada. A roupa cheirosa regressava à rua do Monte pronta para ser esticada, ao vento, num arame estrategicamente posto pelo tio Manuel Jacinto. Onde o vento era uma verdadeira buzaranha. Entre coletes, combinações e ceroulas recordo com entusiasmo as primeiras calças de ganga que vi na vida. Eram as Levi’s 501 do meu primo Carlos. Que vindo da cidade, passava as férias connosco, e que as queria usar todos os dias. Sendo únicas, o vento tinha de fazer o seu trabalho. A avó Ludovina -essa – era incansável. E jamais permitiria que o vento não lhe completasse a tarefa.

A horta, por estar num baixio, era o recanto onde naturalmente nasciam poejos, peras silvestres, ou melhor soromenhos, marmelos, amoras e os agriões do barranco. Tudo o resto exigia disciplina. Cuidados. Os enxertos que o primo António Sapateiro fazia, na Primavera, produziam os primeiros frutos na próxima estação. Ali, por debaixo de árvores de copa generosa, havia também cortiços que as abelhas bem-mandadas haveriam de habitar, para que a cresta acontecesse. E acontecia. Frascos reutilizados aconchegavam o mel que seria, equitativamente, distribuído pelos descendentes. O remanescente era vendido a preço justo. Aos vizinhos da aldeia. Bolas de cera eram aconchegadas em cima duma arca de castanho à espera que viesse o comprador de Messejana. A água-mel era cuidadosamente preparada num tacho de cobre, lentamente ao lume. A avó remexia as brasas para que a temperatura ideal completasse o que as suas mãos já faziam: magia. Era a casca de laranja, cujo cheiro inundava a casa, enquanto almas calmas aguardavam a consistência devida.

Desta iguaria subsiste uma memória. Persistente. O sabor adocicado da água-mel numa tigelinha, misturado com queijo de cabra seco, e cuidadosamente acondicionado em sal, num pote de barro na despensa, apenas demolhado aquando da combinação com o pão quente acabado de sair do forno.

Na mesma horta nasciam também laranjas. Da baía. Ameixas rosa e figos. Saborosas. Criadas no tempo. Irmãmente dividas. Quando era tempo.  Sempre em lotes iguais, em cima da arca de castanho. À vista de todos. Como deve ser feito, quando instintivamente se domina o conceito de equidade, como uma deusa. Assim era a minha avó.

Eu era pequenina. Vestia um bibe novo feito com as camisas que, para o meu tio Mário, na cidade, eram já velhas, mas que afinal deixava novas. Impróprias para ele, eram para mim, depois de transformadas pela minha avó, um motivo de orgulho. Uma roupa nova.

Assim vestida subia o tronco da laranjeira. Na horta. Exactamente a que dava laranjas da baía e que ficava perto do poço. Era lá que habitavam, num ninho minúsculo, 4 passarinhos que antes de o serem foram ovos. E que eu guardava como sonhos a crescer. E que todos os dias visitava para constatar que cresciam. Que um dia iriam voar.

Era de tarde. Outono. Um Setembro, aparentemente, igual a todos os meses de Outono. De cima da laranjeira, onde moravam os meus passarinhos que um dia iriam voar, olho para o poço. Desse poço, enquanto puxava a corda dum caldeirão que regaria uma leira qualquer, uma silhueta jovem, bonita, mas preta, muito preta chorava. Lágrimas gordas caiam no poço. Ansiosa estava para que eu não as visse.

– Mãe, chora porquê?

– Hoje faz 4 anos que o teu pai morreu. Disse-me.

Tinha na altura também eu 4 anos. Guardo esta memória como se a tivesse vivido hoje. Dorida. Mas inequivocamente sólida. Entre o choro, da minha mãe, que alimentava o caudal do poço, com que se regavam as sementeiras e o chilrear dos pássaros, cresci. Hoje, sei que sou a sumula das lágrimas que regaram sementeiras. Mas também do crescimento dos pássaros.

A liberdade quando verdadeiramente apreendida sabe a sal. Mas fortalecem-lhe as asas quando, sem medos, os pássaros encetam voos.

Hoje, olhei o céu.

Bandos de pássaros dirigiam-se para sul.

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