dissidências e resistências
Vera Pereira
Catalina António de Erauso é uma personagem que ficou conhecida em Espanha e um pouco por todo o mundo ocidental como “a monja alferes”. Alguns autores consideram trata-se do primeiro trans* conhecido na história, outros defendem tratar-se de uma pessoa que teve a coragem de transgredir as normas e papéis de género impostos pela sociedade.
Nasceu em Espanha em fevereiro de 1592, décimo filho de um casal que aos quatro anos o entregou a um convento, onde aprendeu a ler e a escrever latim e basco. Quando tinha cerca de 11 anos, depois de uma discussão, fugir do convento, esteve três dias abrigado debaixo de um castanheiro, pintou o cabelo e costurou a roupa transformando o hábito em roupa de rapaz. Passou por várias cidades espanholas, trabalhou durante algum tempo como empregado de mesa, e aos 13 anos partiu para a América do Sul.
De caráter turbulento, viajou pelo Panamá, Peru, Bolívia, Chile, Argentina e México, passou períodos na prisão e em abrigos. Viveu sob o nome Francisco Loiola, Alonso Díaz e Antonio de Erauso, trabalhando como comerciante. Mas foi o papel de soldado que lhe granjeou maior notoriedade: chegou a alferes por méritos próprios – Díaz Ramírez de Guzmán ou D. Antonio de Erauso – e esteve ao serviço da coroa espanhola durante 20 anos. Durante uma batalha ficou gravemente ferido, e, julgando que iria morrer, confessou a um bispo que era uma mulher.
Segundo o relato de época de um viajante (Pietro della Valle, 1626):
“É alta e corpulenta para mulher, não se pode saber só de olhar que não é um homem. Não tem peito, disse-me que tinha usado um remédio para fazê-lo secar e ficar quase achatado, como de facto aconteceu. (…) O rosto dela não é desagradável, mas não é bonita, e está já um pouco danificada pela idade. Usa o cabelo preto curto, como os homens usam atualmente. Na verdade, parece mais um eunuco do que uma mulher. Veste-se como um homem ao estilo espanhol (…) ainda que se mova de modo algo feminino.”
Apesar de ter estado em perigo de vida, sobrevive. Em 1624 volta para Espanha, onde a sua história já era conhecida. Escreveu as suas memórias, que publicou em Madrid em 1625, com dois objetivos: pedir uma pensão vitalícia de 800 escudos pelos serviços prestados ao império espanhol ao rei Filipe IV, e conseguir autorização do papa Urbano VIII para continuar a vestir-se como um homem. Obteve ambos e voltou para a América em 1630, tendo falecido vinte anos mais tarde, a caminho de Veracruz, depois de uma vida intensa.
Transgressões e desvios à norma costumam ser pagos com discriminação, estigma e punição, mas há casos excecionais, como este, que ficou para a posteridade, graças à coragem que teve para quebrar as regras da época em que viveu, ao vestir-se, agir e viver como um homem, e escrever a sua própria história, narrando-a nos seus próprios termos e permitindo-nos que hoje a conheçamos.
Nota: Alguns artigos citam idades diferentes. Optei por referir os dados biográficos do texto de Amaia Uría, publicado no livro Trans* sexualidades, de Lucas Platero.