Sou mulher. Sou gaja. Sou quarentona. Sou divorciada. Sou solteira, descasada. Sou cabra, às vezes. Sou amante. Sou companheira. Sou amiga. Sou boa. Sou má. Sou assim assim. Sou funcionária. Sou cidadã. Sou consumidora. Sou eleitora. Sou dadora de sangue. Sou militante. Sou sindicalizada. Sou ateia. Sou heterossexual, quase sempre. Sou assinante de revistas que nunca leio. Sou colaboradora e sou cooperante e sou voluntária.
Mas não sou mãe.
Não sou mãe, é sempre preciso repeti-lo duas ou mais vezes. Porque se só escrever ou disser uma vez, parece que foi engano, ou que foi piada. Não sou mãe. E não sou mãe porque não quis ser mãe apenas porque não quis ser mãe. Isto é verdadeiramente impossível de compreender. Que tivesse uma doença lixada, que eu fosse definitivamente estéril, que eu tivesse tentado e falhado trinta e oito métodos de inseminação artificial, que eu fosse sem-abrigo e drogada, que eu andasse numa cadeira de rodas, isso vá que não vá até se compreendia. Agora não ser mãe assim por não querer ser mãe, sem nenhuma forte razão médica, política, ideológica, teológica, metafísica, financeira, isso é um atentado à condição sagrada da mulher, uma ofensa aos criadores do universo, uma desfeita e uma injustiça face a todas as mulheres impossibilitadas de parir ou de adoptar.
Ser mulher apta a ser mãe e não ser mãe por não se ter vontade para tal é como não ser mulher. É ser mulher de segunda categoria. É um defeito de fabrico. É uma doença mental. É um tremendo egoísmo, é sentenciar o fim da humanidade.
E para cúmulo, para piorar ainda mais, sou feliz. Sou feliz apesar de não ser mãe. Sou feliz e realizada sem me passar pela cabeça e pelo corpo ser mãe. Eu acho que isso devia dar prisão. Uma mulher assim, ter o descaramento de ser feliz sem a maternidade, é uma desmoralização social para as mulheres, um desincentivo, um perigo. Talvez as mulheres que escolhem e optam por não ser mães devessem viver num ghetto. Numa rua escura, amaldiçoadas e empestadas, evitando contaminar as outras mulheres, porque já se sabe que entre as mulheres é fácil seguirem-se modas.
Não sou mãe e se engravidasse por obra e graça do espírito santo, abortava.
Vá, levem-me um maço de tabaco à cela. Sim, também sou das que fuma desalmadamente. Coisa que dificilmente combinaria com ser gestante.
Não sou mãe e sempre que encalho no absurdo demente do mundo, num mundo senil e moribundo, de morte rápida anunciada, órfão de esperança, sinto que sou mãe em cada mão que seguro, em cada queda que amparo, em cada criança negligenciada que acolho e abraço. Crianças que não têm culpa das mães que nunca deveriam ter sido mães.