Maria Campaniça
Celina Nobre
Florival acordou cedo. Rodeado de moscas. As mesmas que espantava à velocidade com que as ditas se lhe colavam. Não era porque fosse flor ou fonte de mel. Atiravam-se-lhe à roupa. Essa que vestia e que estava impregnada duma sujidade que não era a sua. Não podia ser só sua. Há muito que a ponte que lhe servia de tecto não lhe permitia grandes lavagens. A não ser da alma, com vinho, rasca, que engolia directamente da bag in box, todas as noites, e cujas gotas perdidas eram apenas as que o casaco amarfanhado ainda era capaz de absorver. Para depois aliciar moscas.
Com as mãos no ar a tentar sacudir o incómodo, saiu do esconderijo, a que chamava de ninho -talvez porque na primavera as andorinhas regressassem sempre para lhe fazer companhia – e dirigiu-se ali para os lados do Rossio. O estômago, enquanto caminhava lentamente, roncava combalido. Pela fome, pelo vinho rasca ou pelo desânimo. Não sabemos. Talvez por tudo. Na mão direita a caixa de engraxador. Muito mais leve que todas as agruras que a vida já o havia obrigado a carregar. Às costas. No corpo todo. Até na alma. A verdade é que depois dos 70 já tudo pesa. Pensava, enquanto aproveitando a porta aberta, entrou no n.º 70 da Rua da Prata.
Clicou no botão do elevador e este, contrariamente, a tantas outras chamadas, respondeu de imediato. Ainda que não soubesse para onde estava a ir.
Em frente ao espelho que o elevador lhe impingiu e ainda indeciso quanto ao botão em que iria carregar quase que foi obrigado a ver-se. Desgrenhado, velho, desajustado e sem afectos. A luz insidiosa do elevador obrigou-o a virar-se e em vez da tragédia vê reflectida no espelho a imagem duma criança. A criança que foi, enquanto foi gente lá para a Beira interior. Cheio de caracóis loiros e luzidios. Quando na escola a única sujidade era a da brincadeira. Do peão, da cabra-cega, do arraiol. Olhando, estupefacto para a criança à sua frente o tempo voou. Voltou a ver-se ao espelho. Agora fardado, novo. Soldado em África. Numa guerra que nunca foi sua, mas que lhe pertenceu. Florival fecha os olhos e, como se fosse no espelho, vê a imagem da madrinha de guerra, a Valentina. Costureira. Cintura estreita, cabelos fartos e o futuro.
Chega ao 6.º andar direito. Toca a campainha.
A porta entreabre-se e uma silhueta grisalha olha-o. Com dificuldade em vê-lo. Pergunta-lhe de onde vem e que quer.
– Tu és o Florival? Diz-lhe.
– Agora já não sou ninguém. Pensa para consigo próprio, enquanto tenta esconder as nódoas, as olheiras, o mau cheiro. Tenho fome. A senhora pode por favor ajudar-me?
Num saco plástico do continente Valentina deposita haveres. Comestíveis. Passa-os para a mão de Florival que, sem deixar a caixa de engraxador, o acolhe, agradecendo, humildemente.
Enquanto desce, já pelas escadas, para não se voltar a ver ao espelho, sente-se imbuído duma tranquilidade inexplicável.
– Há fome que só passa com os olhos. E quando toca o coração.
Já no Rossio arma a tabanca de engraxador. Olha, com brio, para os utensílios que usa, como se fossem obras de arte. Da comida nem se lembra. Guarda-a para os tempos difíceis.
Enquanto o primeiro cliente do dia se senta e pede que lhe deixe os sapatos num brinco, Florival pensa em Valentina e avisa-a:
– Não abras a porta a estranhos. Nunca.
Nem debaixo da ponte fico em descanso. Pode ser que algum dia apareçam os nossos filhos para me despejar, a dizer que a ponte é deles. E nesse dia, mesmo que fosse primavera, e se as andorinhas ainda ali morassem, para me fazer companhia, iriam embora.
– Fecha a porta Florentina. (meu amor)
– E o Dr.? Está, como vejo, bem. Quanto aos sapatos ficarão a brilhar mais que o sol. Confie em mim.
Entretanto, portas fecham-se.
Na sua cabeça todas continuam abertas. Tal como na sua alma.