
carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
“Pôs um pouco de baton
E um leve toque de pintura
Tirou do cabelo o travessão
E devolveu ao rosto a candura”*
O estuque. Saímos de casa com as caras retocadas. Tentamos tapar manchas, buracos, olheiras, sinais de desgaste, de cansaço.
A cal. O leite branco fervente aplicado religiosamente pela minha avó pelo menos uma vez por ano, ainda que já não pudesse das costas. Pincel para cá e para lá, corpo dobrado ao meio, tapa manchas, sujidades, disfarça os buracos. As paredes branquinhas, as risquinhas direitas. O sol refletido. Tudo higienizado. Como o estuque que pomos nas caras: um tom moreno saudável, linhas direitas ou discreta e perfeitamente inclinadas, uma corzinha nas bochechas, para parecermos mais saudáveis. Mais higienizadas.
A decadência ofende-nos: manchas, sujidades, buracos, doenças que não tendo cor, descoloram as faces. Deve ser essa a cor de burro quando foge.
A Maria trabalha na recuperação de doentes. A Maria é muito bonita e quando a conheci tinha vinte e poucos anos, pelo que a maquilhagem como disfarce de uma pele com imperfeições, era completamente desnecessária. Mas usava-a: um pouquinho de base, um tapa olheiras, rímel e um blush muito discretos. Ensinou-me que o fazia pelos doentes, que lhes devia pelo menos isso: que olhassem para alguém bonito, agradável enquanto eram “castigados” com a repetição de movimentos dolorosos. Para que pudessem contar que todos os dias alguém tinha o cuidado de se preparar para os receber. A Maria fazia poesia com a maquilhagem dela.
Temos tendência a tratar bem e a cuidar do que está cuidado. Sentimo-nos bem recebidos num espaço limpo, mesmo que sem maquilhagem. Gostamos de ter algo agradável para olhar enquanto andamos na nossa vidinha.
Vivemos em tom de cor de burro quando foge e é desagradável. Também arriscamos a levar com um calhau na cabeça numa rua estreita, e esse é um risco desnecessário nos dias que correm. Tempos houve em que “lá vai água” era aviso para fugir, mas toda a gente sabe que as derrocadas não gritam antes de derrocar.
Todos os dias saio do mesmo ponto para o mesmo ponto da cidade. O caminho é sempre o mesmo. Ou era, até há uns meses atrás, quando a cidade começou a ser invadida por arte. Desenhos. Alguns magníficos, divertidos, sarcásticos… há de tudo. E que alegria tenho eu sentido em variar os trajectos que faço, constatar a falta de cal e de estuque e tropeçar em novas obras de arte acabadas de colar. E tem sido rara a semana em que não descubro mais dois ou três. Não só alegram o dia, como “o sol pela manhã, quando nasce”, como nos enchem os olhos de cor, a cabeça de mistério (quem o fará? Porquê? Isto estava aqui ontem?). Fazem-me andar de olhos abertos, atentos ao pormenor, atentos à cor.
Que alegria haver gente nova a despejar-nos arte e cor para cima, sem sequer um aviso! Mal comparado, um “lá vai água” para prepararmos os olhos para a baldada de traços e ironia. Não. O ataque surpresa é melhor!
Obrigada CM e Johnnybravo, continuem que a malta está a gostar. Muito.
E não é que os desenhos substituam o estuque e a tinta em falta, mas se levar com um calhau de repente pela cabeça, abalo do mundo com muito melhor disposição.
* Excerto de “Saíu para a Rua” de Carlos Tê, que Rui Veloso musicou e bem