A coragem da autenticidade

HIGIENE ÍNTIMA

Eufémia Maria

Em criança via muitas vezes o meu pai a treinar a obediência dos cães. Por vezes, com a brutalidade do sol a impor-se, e ele lá ia adestrar os bichos com truques parvos e inúteis. Os cães, dormindo sossegadamente, eram obrigados ao prazer do meu pai. O prazer de mandar e ser obedecido. O prazer de ameaçar e punir: “- Se não deres a pata esta noite não comes”. A partir daí, cada lambidela dos cães nas mãos severas do meu pai e cada rebolanço patético no tapete da sala, era sinónimo de cinismo interesseiro por um prato de comida. A partir daí, cada suspiro anuente da minha mãe no desfecho de uma discussão, cada aceno de cabeça no eco de uma ordem doméstica, era sinónimo de cinismo interesseiro por um prato de comida.

Quando aos dezasseis anos comecei a namorar com o João e ele me obrigava a mudar de blusa, com o complemento de achar que eu era uma puta por andar com decotes assim, eu obedecia, não porque recebesse em troca um prato de comida, não porque eu me considerasse uma cínica interesseira, mas porque desconhecia outra possibilidade para lá da normalização da obediência. Desobedecer era por si só a prática de um crime. Nem que fosse apenas o crime da culpa. Por isso, passei anos a usar decotes e mini saias no esconderijo do meu quarto, na culpa controlada e solitária de ser eu naqueles instantes.

Quando casei aos vinte anos com o Francisco, porque o João tinha decidido um ano antes que eu não daria uma boa dona de casa, eu percebi no discurso do padre que nos casou, que a obediência era uma coisa estimável e condição da felicidade conjugal. Como tal, aceitei que o meu marido me violasse todas as noites em que eu não quis abrir-lhe as pernas e provar o seu hálito a bagaço. Também aceitei o número de filhos que ele estabeleceu, assim como os penteados que ele autorizou, as obrigações de que ele se lembrou, e também aceitei as dores e as lágrimas fechadas no quarto que já nem era meu. Às vezes, num relance das telenovelas, eu via mulheres corajosas e sonhava com elas.

Um dia, no trabalho que o meu marido condescendeu que tivesse, conheci alguém que transpirava liberdade. Liberdade e força. Força e determinação. Uma pessoa que eu não imaginava existir. Uma culpa que não parecia culpa mas apenas justiça e verdade. Um riso capaz de enfrentar demónios. Uma resistência capaz de derrubar exércitos. E eu apaixonei-me. Essa pessoa era o projeto adormecido de mim. Em silencio fui sedimentando a minha admiração, ao mesmo tempo que crescia em mim a vontade de resgatar tudo o que anulei e recusei fora do espelho que me refletia com cores verdadeiras.

Quando um dia, surpreendentemente, essa pessoa me deu a mão e a segurou e depois a largou para que eu procurasse a dela, o amor explodiu com a coragem de ser eu própria.

Hoje passeamos de mãos dadas na praia, sem roupa no corpo. Sem culpa. Com as únicas amarras que consentimos: obedecermos sempre à autenticidade.

Obrigada Maria Alzira por construíres comigo a felicidade.

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