à primeira segunda do mês
Filipa Figueiredo
As rádios anunciavam o pior dia do ano, não por que um novo vírus se alastrava a olhos vistos, nem por se marcar o início da 3ª guerra mundial, mas apenas porque era a terceira segunda-feira de janeiro, e estudos revelavam que a maior parte das pessoas, nesse dia, fazia contas à vida e se sentia deprimida. Nenhum melhor pretexto para que a Menina M se levantasse da cama e telefonasse em pânico para o seu coach. O telefonema foi rápido, bastaram-lhe três frases motivacionais, para que a sua determinação ecoasse repetidamente enquanto tomava um duche: “O segredo é um só, acreditar que tudo vai dar certo. Porque vai”; “uma pessoa é produto do seu pensamento, no que ela pensa ela se transforma”, “Positividade…positividade … positividade …”. Mas as suas evocações foram logo interrompidas, Porra, acabou-se a água! A menina M vivia num apartamento, numa cidade estridente e luminosa. Vivia sozinha porque a vida não era para ser dividida. Não lavou os dentes, mas secou o cabelo, vestiu-se e besuntou a cara, sorriu para o espelho e repetiu as frases mais uma vez. Chamou um uber com destino ao escritório e lá foi ela. A menina M, empreendedora e sorridente por onde passava sorria e cumprimentava os colegas lançando uma energia contaminadora. A secretária estava inquestionavelmente limpa e arrumada. Esteticamente minimalista e com todos os objetos estrategicamente posicionados. Sempre que entrava colocava no respetivo espaço pré-planeado o seu dispositivo portátil, que lhe permitia monitorizar a temperatura, a humidade do ar, o dióxido de carbono, o nível de ruído, recebendo notificações sempre que algo não estivesse dentro da regularidade, nomeadamente a entrada de estranhos. O problema é que a menina M tinha configurado o dispositivo segundo os padrões da normatividade líquida da sociedade contemporânea. Assim que se sentou as notificações começaram a cair no seu smart phone e no seu computador. O escritório transformou-se numa espécie de instalação sonora de pequenos e rápidos toques, anunciando a intrusão de pessoa não identificada. “Positividade…positividade”, a sua assistente, o segurança e o diretor entraram pelo escritório a dentro, que estava vazio e apenas avistaram, subindo a parede branca, uma enorme barata. Num rápido reflexo o segurança tirou o seu sapato e esborrachou a dita na parede. A partir deste dia a menina M nunca mais repetiu a frase motivacional “uma pessoa é produto do seu pensamento, no que ela pensa ela se transforma”.
Ver: Dormindo com Kafka
Uma opinião sobre “Dormindo com Kafka II”