carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Ana Ademar||Expoente M Rádio
Todos os tempos são históricos, mas uns são mais que outros e estes que vivemos, são-no especialmente.
Em pouco mais de 4 meses vivemos com um vírus que ainda não se conhece convenientemente; ficámos em confinamento, o que significou para todos mudanças radicais nos hábitos e rotinas; alimentámos a esperança e o medo com notícias e conclusões científicas que são desmentidas no dia seguinte; vivemos um desconfinamento a passo lento, onde as rotinas e hábitos têm de ser novamente alterados; sentimos a impaciência de que volte tudo a ser o que era e a desconfiança de que nada será como antes (não porque as coisas eram impecáveis, mas porque era como as conhecíamos e o novo e o diferente assustam sempre). Não tivemos tempo ou distância suficientes para analisarmos o impacto das mudanças radicais na forma como vivemos o quotidiano. E contaminados com medo, não só da doença, mas agora das suas consequências na sociedade, estamos expectantes. Paralisados. À espera.
No meio de tudo isto, George Floyd morre tragicamente. Morre de homicídio. E George Floyd foi, a meu ver, (que é um ver muito ignorante no que toca à sociedade americana em geral e à vida da comunidade negra – lá ou cá) foi a gota de água que fez transbordar o copo. E porque foi filmado e pudemos todos assistir à morte de um homem às mãos (aos joelhos, para ser exacta) de quem tem por primeira obrigação ser a salvaguarda dos cidadãos, todos nos sentimos chocados e traídos.
No meu caso senti o choque de ver a postura orgulhosa e cobarde de um homem enquanto sufoca outro. O choque de ver a absoluta conivência dos colegas. E para ser sincera, o choque pela absoluta inércia de quem assistia e filmou (e bem!). Como é que se explica isto? Não falo de um acto heróico consciente, falo de um acto irracional, de um instinto que é suposto termos quando vemos alguém a ser maltratado. Mas se calhar não é altura de nos questionarmos enquanto sociedade, enquanto cidadãos e à nossa (cada vez maior, parece-me) falta de empatia.
Ou é?
Deixemos de lado a realidade americana e olhemos aqui para o nosso cantinho. Os nossos bons e brandos costumes, a profunda crença de que somos um país de boas pessoas onde coisas tão feias como o racismo, não existem. Gostamos todos dos negros, dos indianos, dos romenos, dos paquistaneses, dos ciganos. Tratamo-los bem, desde que se portem bem. Que a condescendência com que lhes falamos não é porque, em algum sítio cá dentro, os vemos como inferiores. E seja ou não resultado do ADN proveniente de um antepassado colonialista, é tempo de enfrentarmos que acontece e o que podemos fazer em relação a isso.
Não falo dos movimentos de extrema-direita que andam aí, que sempre andaram e que matam, por exemplo Alcindo Monteiro e José Carvalho. Noutra altura o farei. Agora falo de mim, de gente de bem, de gente, que mesmo sem saber, guarda lá dentro um colonialistazinho que sai cá fora e dá um olá à assistência sem que nos apercebamos.
Vamos lá a ser francos, basta uma curta visita à rede social mais perto e entre as reacções aos protestos encontramos o: “txiii que exagero” e o “e não se preocupam com o Covid?!” e o mais directo “deviam ir para a vossa terra”. Da última não falarei, como já referi, quero falar da gente de bem que sei que aí anda e só está mal informada. Portanto o primeiro tipo de reacção é o da malta que anda a dormir e jura a pés juntos que o racismo é uma coisa da América e que cá não temos disso. A segunda reacção é a da malta que também anda a dormir e não entende a urgência das coisas que não podem esperar. Mais.
* música de Milton Nascimento muito bem interpretada pelo próprio, mas pela Elis Regina ganha todo um outro sabor…