
A Louca da Casa
Carmo Miranda Machado
Meu amor,
No início de mais um mês de pandemia, vários temas se amontoam na minha mente. Sei que a nossa pequena aldeia alentejana na margem esquerda do Guadiana, onde nascemos, tem perdido um velhinho todos os dias. Às vezes, dois. Que angústia deve ter sido ouvir o sino da igreja repenicar por finados tantas vezes seguidas… Só não consigo imaginar o que sentiste quando ele tocou e era a tua mãe que tinha partido. De repente. Sem um adeus. Uma despedida.
Quem nasceu no Alentejo sabe que há tradições que permanecem no tempo. O velório. O enterro. Os cumprimentos de pêsames. O acompanhar a pé até ao cemitério o morto. O último olhar antes da terra. Dou por mim também a pensar também no resultado das eleições presidenciais e na insatisfação que ela revelou. Qual o papel da nossa região no país que temos, amiga? Como é viver no Alentejo? A família. As famílias. O Natal. A Páscoa. As tradições da nossa terra. E, sobretudo, o que vai por aí, para além das fronteiras da planície alentejana que, teimosa, insiste em manter de pé as suas gentes e os seus costumes ancestrais.
Fui ao Alentejo neste Natal. Desde então, sabes que não regressei. Percorri os caminhos que, durante tantos anos me levaram sempre ao Alentejo profundo – metáfora da casa materna – por alturas natalícias e onde, sem exceção, encontrava o lume aceso, a mesa posta e a casa aquecida. Agora, o vazio de uma casa fechada faz-me repensar tudo. E, sobretudo, faz-me pensar em ti. Desde essas duas simples coisas que são a vida e a morte, a outras ideias muito mais complexas como, por exemplo, o que nos acontecerá quando as casas maternas encerrarem de vez e não tivermos, nós, exilados pelo mundo fora da planície, um local onde voltar.
Dou por mim a pensar que o berço de madeira que nos viu nascer corre riscos de apodrecer se não mantivermos oleadas as dobradiças daquelas pequenas rodas que nos embalavam. Voltar ao Alentejo e manter viva a alma alentejana ameaça ser uma longa de viagem até às memórias da nossa infância e juventude. A alma alentejana mantém-se. Esse espírito que nos envia de volta aos anos em que fomos felizes, continua vivo. Porém, agora traz agarradas todas as mágoas de um percurso que em muitos casos nos levou a abandonar a casa materna em busca de outras casas e de outras vidas fora das planícies. Tu que ficaste aí, meu amor, sentirás diariamente esse grande vazio de perder uma mãe.
Se há alturas em que a alma alentejana renasce ou simplesmente se manifesta mais fortemente, é por alturas do Natal e da Páscoa que se avizinha. Quero pensar que poderei ir ao Alentejo brevemente. Parar a meio da ponte sobre o Guadiana, observar os dois lados do rio e olhar as nuvens num céu intenso de azul que, apesar de todos os vírus, se manterá inalterável. Sabes, amiga, que o azul do nosso céu alentejano sempre me pareceu mais forte do que nos outros sítios do mundo por onde andei? Percorrerei depois os dezoito quilómetros de estrada serpenteada que separam Serpa da nossa terra, onde te abraçarei, amiga, cujo coração se despedaçou. Dirigir-me-ei depois ao cemitério mesmo sabendo que não está lá ninguém.
Irei de encontro às nossas mães. Estarei algum tempo a contar-lhes as últimas notícias, consciente de que me ouvirão. E falar-lhes-ei de um mundo estranho, dos cafés fechados, do cante alentejano sussurrado às escondidas, dos velórios que não se realizaram, de todas as despedidas adiadas. E das gentes. Dos mais velhos, já quase todos sós. Aquece-os o lume. Filhos todos no estrangeiro. O café quente com uma fatia de bacia. Do aparente sucesso que o Alentejo tem lá fora. Do comércio que parece adormecido, morto. Das grandes superfícies que não dão tréguas às popias caiadas ou aos bolos folhados da padaria da esquina. Que já não vi. Das pessoas que visitei para um abraço. Das saudades que as ruas de uma aldeia podem provocar. Das memórias que as paredes de uma casa podem guardar. E agradecerei às nossas mães, esta alma alentejana que nos deixaram por herança.
Regressarei a Lisboa com o coração apertado. Pequeno. Mas com uma certeza: nunca se deixa o Alentejo, mesmo que se diga que sim.