carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Descobri que a bola e o futebol não são a mesma coisa. De forma muito sucinta, o futebol é o que vemos no telejornal: milhões, ordenados pornográficos, fraudes, falcatruas e pouco mais e não me interessa. A bola é a pureza da coisa. A beleza do conjunto, a capacidade de unir e de provocar terramotos de felicidade. E eu agora, sou da bola.
Ainda hoje guardo muito boas recordações dos jogos que nos levaram à final do Euro 2004. Não é propriamente dos jogos, mas de como, onde e com quem os vi. Não sei se voltei a viver momentos de tanta euforia, nem sequer a entendo por completo, mas para quê racionalizar o que é tão profundo e tão bom? Certo é que aqueles momentos me estão gravados profundamente na memória. Sentada no mesmo café, com os mesmos amigos e os mesmos desconhecidos, que ao fim do primeiro jogo já não o eram tanto, porque a cumplicidade assente no mesmo desejo partilhado entre todos, é forte e fazia-nos a todos obedecer às mesmas regras sem que ninguém as tenha explicado: sentávamo-nos todos exactamente nas mesmas cadeiras, nas mesmas mesas, a beber e a comer exactamente a mesma coisa, porque estávamos todos muito certos que a vitória dependia do lugar de onde se assistia e do menu de imperiais e caracóis.
E eu não sou da bola. Ou não era. Não sigo, não percebo as tácticas e continuo a não querer saber exactamente o que é um fora de jogo. Não acho que seja importante, não acho que do jogo dependa alguma coisa séria, ainda que goste de ver a selecção, de gritar, de sofrer com as faltas, de me lambuzar em expectativa e excitação (e imperiais e caracóis). E foi isto que eu descobri há quinze dias atrás: a extrema importância da bola e dos momentos de felicidade que esta produz e que talvez seja precisamente aí que assenta a máquina de produzir milhões e por conseguinte, falcatruas, fraudes e tudo o que é feio e se chama futebol. Porque a bola é outra coisa. A bola, agora sei, é bonita e tem um poder do caraças. E qualquer coisa que tenha o poder de fazer as pessoas felizes, mesmo que seja uma felicidade fugaz, mas que faça esquecer tudo o que perturba e incomoda, tem de valer muito. O poder de nos fazer esquecer, de ser alimento para a alma, tem de valer milhões.
Há pouco mais de 15 dias a bola provocou uma explosão de felicidade nesta cidade. Queria escrever sobre a quantidade de felicidade que eu presenciei, mas de repente percebi que não temos unidade de medida para ela e eu acho que isso é muito triste. Porque se somos raça para medir tudo, incluindo pilinhas (coisa tão importante que até pode provocar guerras), como é que se pode não ter unidade de medida para coisa tão fundamental quanto a felicidade?
Era a final do Campeonato Africano das Nações, o título era disputado entre o Egipto e o Senegal. Cerca de meia centena de senegaleses juntaram-se na Pracinha a assistir. O jogo foi tenso. A equipa do Egipto deu sarrafada em bom e o jogo foi a prolongamento. Não resolveu absolutamente nada: empate. Fomos a penaltis. E toda a gente sabe que os penaltis fazem sofrer. E o Egipto falha um e o Senegal também. E o Egipto acerta e o Senegal também. E o Egipto falha um e o Senegal acerta e vitória!
Se houvesse um sismógrafo para a felicidade, estou certa que tinha atingido 10 na escala de Richter. Foi uma explosão de gritos, danças, música e coca cola.
A festa deixou a Praça da República e ocupou as ruas. Num vídeo partilhado no Facebook todos pudemos ver como se parece a felicidade a descer a Rua das Portas de Mértola. Mas além disso, além da comoção de ver a felicidade nos outros, impressionaram-me as reacções ao dito vídeo: dos parabéns à empatia foi um salto e a identificação surge com naturalidade: “quando estava na Suíça e Portugal ganhava, fazíamos o mesmo”. Pois é, fazemos todos o mesmo, sentimos todos o mesmo.
Se é verdade que a bola em si, não resolve nada, também é verdade que nos fez chegar mais perto uns dos outros. E se isso é não fazer nada, vou ali e já venho.
Existe a economia da felicidade e o respectivo indicador
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